Estado, governo, direito e Constituição: algumas considerações no percurso histórico até Marx

1. Introdução: antes de situar a matéria e a disciplina, importante destacar alguns pressupostos para nosso estudo, balizados num método de interpretação (leitura, cognição e compreensão) em relação a cada uma das “categorias” que serão trabalhadas. No livro Ensaios de Antropologia e de Direito, (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002) Kant de Lima (advogado e antropólogo) chama a atenção para a necessidade de um olhar “crítico” em relação ao direito, a partir de alguns “olhares”:

 “arbitrariedade dos fatos culturais” e necessidade de desnaturalização do que tomado como modelo e verdade (KANT DE LIMA, p.03) – desconstrução de pré + conceitos “naturalizados”, ou seja, tidos como verdade numa “escala evolutiva”.

 cuidado com o olhar de mera transposição de espaço e modelos, que dão origem a reduções arbitrárias (espaço europeu transposto para outros ambientes + negação histórica nos espaços ocupados).

 estudo comprometido com o desvendamento de representação acrítica de realidade (fenômenos sociais), que apenas estão situados de maneira dogmática (usualmente relacionadas com campo de dever).

 direito ocupando a posição de mecanismo de controle social, que reprime comportamentos indesejáveis e produz e reproduz ordem social (Radcliffe-Brown).

A partir desse diálogo, o estudo do direito constitucional pode se desenvolver com a lembrança da observação da diferença, do pluralismo, da conflituosidade e da diversidade, onde, no lugar de “primitivismo”, questiona-se a “racionalização” da prática de poder, que ocultaria a diversidade, a complexidade e diferença.

No ensaio Transação penal, controle social e globalização (Porto Alegre, Fabris, p. 70), Miranda dialoga sobre Estado e direito, afirmando que Estado estaria legitimado como pólo aglutinador do monopólio da dicção jurídico-positiva, tendo sua “essência” como elemento componente de um subsistema político, na medida em que representa um salto qualitativo na consolidação sistêmica imediatamente superposta à noção de sociedade, prius em relação à organização estatal.

Para ela, trata-se de um instrumento coercitivo o subsistema normativo representado pelo direito, assecuratório da administração de relações intersubjetivas e sociais, para impelir a coesão necessária a uma convivência hipoteticamente harmônica entre membros historicamente definidos em sociedades. E, a partir daí, o direito pode ser vislumbrado como subsistema irradiador de mecanismos de regulação, atuantes ante à falência dos processos de socialização, a fim de restaurar e manter a organicidade e funcionalidade do sistema (econômico, político, cultural).

2. Estado e direito a partir da Filosofia Política: quais relações poderíamos encontrar entre sociedade, estado, direito, constituição e direito constitucional? A partir de alguns níveis de discussão:

 Estado como fenômeno histórico, presente nas sociedades ocidentais indo-europeias romano-germânicas.

 Estado como entidade espacial, de natureza sociopolítica e cultural, explicado pelos filósofos, sociólogos, antropólogos.

Quando teria se dado o “surgimento” do Estado (?). Podemos considerar, dentro disso, algumas perspectivas:

a) Estado como elemento universal, presente em várias épocas e sociedades;

b) Estado e sociedade em momentos distintos de desenvolvimento;

c) Estado como entidade com determinadas características definidas (dogmáticas, ou seja, delimitadas por quem estudou o fenômeno).

Dentro disso, a formação do Estado poderia ser originária (ou seja, quando nada antes existia, de maneira “naturalizada”, “contratual”, “liberal”, “não contratual”) OU derivada, por fracionamento ou união. A partir de uma perspectiva cronológica, mas, acima de tudo, tomada como processo contínuo, podemos fazer alguns recortes em relação ao desenvolvimento de uma relação entre Estado, direito, ética e moral.

3. Estados teocráticos até a polis e o Estado Romano:

A compreensão grega é marcada por uma crise da governança por religiosidade, marcando as primeiras relações e tensões entre Estado, Ética e Direito. Trata-se de oposição entre physis e nómos – ruptura na visão cósmica-política tradicional, que se apoiava na universalidade nomotética, de cunho religioso e mítico, que embasa um jusnaturalismo que tende a agregar a esfera moralizante.

Qual seria essa visão cósmico-política a estabelecer regras para o ordenamento da sociedade? Segundo LIMA VAZ (Ética e Direito. Organização e Introdução de Toledo, Cláudia e Moreira, Luiz. São Paulo: Loyola / Landy, 2002b, 366 p), a ordem social é continuidade da ordem natural (acima). O nómos, dentro disso, seria o modo de vida do homem conformado à ordenação cósmica = ligação entre ordem da natureza e da ordem social.

A primeira crise no universalismo nomotético deita raízes na primeira Ilustração sofística (crise da polis), pois, de um lado, os filósofos sustentavam, ainda, uma ideia de conexão a um substrato divino (relações são dadas, naturais e imutáveis), enquanto os sofistas, contrariando a visão dos filósofos impregnada de religiosidade, sustentavam a ruptura cosmogônica, para estabelecerem uma compreensão de convencionalidade, ordem objetiva e de apreensão pela razão.

Os sofistas trouxeram a possibilidade de os gregos romperem com o nómos tradicional (conexão entre cosmos e a política), abrindo espaço para essa cisão e alarmando os filósofos, porque esses entendiam que a liberdade plena para formulação da política era perigosa.

Como contraponto, os filósofos mantiveram a vinculação entre physis e nómos, modificando a concepção nomotética tradicional, mas mantendo a percepção cósmico-política.

Eis a razão pela qual o direito e o Estado, na Grécia e em Roma, ainda está imbricado por religiosidade (direito costumeiro, onde “costume” deriva da hierarquia lastreada na concepção de realidade prévia e construída [dada a priori]).

4. Estado medieval:

Na concepção de Estado medieval fica mais nítida a cisão entre Direito, Estado, Ética e Política, principalmente na obra de Maquiavel em sua na teoria das elites e teoria democrática poliárquica (visão que a sociedade é composta por grupos de interesses, sem preocupação ética). Não podemos esquecer dos reflexos no pensamento econômico, a partir de Hume, Adam Smith e, posteriormente, Locke.

Em Maquiavel vislumbra-se a separação entre a técnica do poder e o discernimento sapiencial do mais justo, pois sua obra O Príncipe discerne bem essas duas dimensões. Além disso, a preocupação fixa raízes na significação ética do Direito, ou, ainda, da relação entre Ética e Direito, pois, da resposta dependerá o destino das sociedades, no que tange ao alcance de justiça (sociedade justa), ou, ainda, no tratamento da sociedade, bem como na formulação normativa (leis, Constituição) como mero sistema mecânico, limitador de liberdade, despojando o homem da sua razão de ser ou como portador de ethos.

Importante considerar o pensamento de Maquiavel situado num contexto de forte desejo de unificação da Itália, que apenas poderia ser feito a partir de um monarca com pulso firme, de ascensão legítima ao poder e que defendesse seu povo sem escrúpulos e nem medir esforços (contratualismo absolutista).

O monarca – Estado – deve, para Maquiavel, reunir uma série de condições, tal como concentrar em si a “astúcia da raposa e a coragem do leão”, eliminando, sem “contemplação ou hesitação, tudo aquilo que possa ameaçá-la, preferindo ser temido do que amado, pois ele sempre tem em conta a volubilidade humana”.

Com isso, o príncipe não hesitará em recorrer ao crime se for necessário, mas deve "abster-se dos bens alheios, posto que os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio" ("O Príncipe", cap. XVII).

A sua política do monarca, dentro de tal contexto, deve pautar-se na eficiência, procurando o príncipe “vencer e manter o Estado: os meios serão sempre honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados” (O Príncipe, cap. XVIII).

Vamos fazer a leitura disso sem anacronismo? É a crítica à máxima “os fins justificam os meios”, pois, na época dele, a Itália não era unificada e, além disso, era ameaçada por ataques estrangeiros.

5. Estado “moderno” e a contribuição do pensamento liberal, hegeliano e marxista para uma teoria dogmática e jurídica de Estado

Por outro lado, gravitam outras percepções sobre formação de um Estado Moderno, desde a concepção liberal, que tomou conta de vários aspectos da vida em sociedade (economia, cultura, política), passando pela dialética histórica em Hegel e no marxismo. Importante situar e compreender bem essas categorias, tendo em vista que o direito constitucional situar-se dentro de uma dinâmica sociopolítica.

A originalidade de liberais como Locke consistiu em observar que o direito natural se concretiza no direito da propriedade, a partir da racionalidade encontrada pelo jusnaturalismo em fundir as ideias de Bem e do direito.

Foi Locke quem sedimentou a teoria toda utilizada pelos demais teóricos, a partir da concepção de natureza, pois na visão clássica, Natureza relaciona-se à ordem natural (universalidade nomotética). Na visão moderna, a Natureza não tem um bem em si mesmo, precisando ser criado um bem pelo homem, com atributo de sentido e finalidade.

Em Locke isso aparece quando se fala na criação do bem do indivíduo, que é a noção de propriedade. O que existe de bem na Natureza, na verdade, na verdade, não está na Natureza em si, mas em virtude do trabalho humano.

O trabalho acrescenta algo que não está na Natureza, agregando um bem, um valor. Qual a essência do valor? Em si mesmo, expressão de quem o aplica?

O trabalho, em Locke, agrega um valor ao que está na Natureza, que não tem o bem em si, mas depende, por outro lado, da transformação empregada pelo trabalho.

O bem será acrescentado. Como conectar isso à organização estatal, bem como a uma gênese de constitucionalismo?

Essa é a contrapartida institucional: a propriedade é um direito natural, repartido por todos que, movidos por seus sentimentos, tendem a litigar.

Daí, como todos têm poder de punir, todos estariam possibilitados de exercer paixões na aplicação da punição, de modo que o poder distribuído indiscriminadamente constitui ameaça. O poder de legislar do de punir cria uma esfera de ação que não é fundada na coação, e sim no consenso. O respeito à propriedade deve ser dogma, bem como o modelo de propriedade torna-se o paradigma em relação a todos os outros.

O que traz a comunicação entre o direito natural e a legitimidade é o consenso (racional), pois, para Locke, retirando a tradição e a coação sobra o CONSENTIMENTO, que é a base de sustentação para a observância e sustentação do Estado e do governo.

Locke concentra todo o ideal liberal de compreensão de mundo, partindo, pois, do conceito de direito natural, bem como de contrato, somente possível porque as partes contratantes foram livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado, podendo avençar a transferência para o ente supra individual – Estado – para concretizar a regulamentação mínima.

Como contraponto a uma percepção ideal de contratualismo podemos trabalhar a contribuição hegeliana para uma teoria de Estado e Constituição, lembrando ter sido Hegel o primeiro autor a fazer uma distinção entre a sociedade civil e o Estado político.

Para Hegel em Princípios da Filosofia do Direito, a sociedade civil é cenário de antagonismo e conflituosidade, firmada em dependências mutuas entre todos os indivíduos, enquanto o Estado político , em outro plano, orienta-se na unidade que finda por superar as contradições, propondo-se à resolução delas, a partir de uma relação de efetividade de vínculo entre Estado e indivíduos (ou seja, não há “opção contratualista ”).

O Estado Moderno em Hegel sustenta uma autonomia de partes que, por sua vez, referem-se a um todo, uma unidade maior (essa é a maior crítica feita a Hegel, no sentido de totalitarismo), que não pode ser negligenciada. A relação, aqui, é que interdependência entre as duas esferas: Estado e indivíduos.

Já para a teoria marxista de política, há a rejeição da ideia segundo a qual o Estado seria “agente da sociedade como um todo” e do “interesse nacional”, distanciando-se, assim, do pensamento hegeliano fortemente marcado pelo nacionalismo alemão de sua época.

Para Marx e Engels, a base da sociedade é contradição interna entre a produção econômica (infraestrutura) e uma superestrutura, da qual fazem parte o Estado e as ideias econômicas, sociais, políticas, morais, filosóficas e artísticas.

É no plano material – e não abstrato – que as diferenças se colocam como relevantes, trazendo a dimensão de Estado que legitima as distinções materiais entre os indivíduos, sendo apropriado politicamente por “classes dominantes” para satisfação de interesses particulares.

Diante da compreensão jus-política de Estado, precisamos fincar uma categoria que seja própria do direito (ramo de conhecimento com relativa autonomia para criar suas categorias e conceitos dogmáticos).

6. Formas de Estado, de governo, sistemas de governo

Daí se falar em Estado como “ordem jurídica soberana” que almeja o fim comum para determinado povo em dado território, não se perdendo em vista, para tanto, a leitura crítica acima disposta, situando “ordem jurídica soberana” dentro de uma contextualização sociopolítica, que pode se revelar numa conjunção de Estados (o Estado Federal, a Confederação etc.), no Estado simples ou Estado unitário.

O Estado unitário caracteriza-se pela centralização política, com um poder central que exerce plenamente – com soberania - o governo, por meio direto ou por delegação de autonomia (nunca independência).

O Estado Federal, por outro lado, reveste-se em uma aliança ou pacto de descentralização, com autonomia, entre vários entes. Assim, existe um ente central – União federal, que é o eixo de poder que coexiste com polos autônomos que praticam órbitas jusnormativas descentralizadas, que vão haurir suas regras de atuação num pacto solene de constituição (daí o gérmen da Constituição).

Importante incorporar ao estudo as dimensões ou as características do federalismo, a partir da repartição constitucional de competências, rendas e atuações, possibilidade de auto-organização por Constituição própria, certa rigidez da carta constitucional, indissolubilidade do vínculo federativo, participação dos entes federativos na produção normativa geral (a exemplo do Senado), existência de um tribunal constitucional, possibilidade de intervenção.

O Estado Regional é estado unitário constitucionalmente descentralizado em regiões, mas, que, ao contrário de um Estado Federal, em que há possibilidade de reconhecimento de poder constituinte às unidades descentralizadas, no regional isso não acontece (Itália e Espanha).

Forma de governo é a estruturação feita das instituições que compõem o poder soberano do Estado, bem como das relações daí derivadas.

Enquanto a forma de Estado diz respeito à maneira como o ente soberano atua dentro de sua esfera de poder (principalmente perante a ordem externa e interna), a forma de governo é resultado de como o Estado se organiza politicamente em nível institucional.

Temos, numa dimensão sectarizada, as seguintes formulações para uma estrutura de governo: a)anarquismo, como forma política que objetiva abolir o Estado, por meio da supressão do regime capitalista e da manutenção de um regime de liberdades; b) república, que designa uma predileção política de escolha de representante, com caráter de temporalidade, eletividade (direta ou indireta) e responsabilidade; c) monarquia: forma política que tem o rei como representante e expoente máximo do Poder soberano, com caráter de vitaliciedade, hereditariedade, irresponsabilidade (em termos, em face do constitucionalismo parlamentar e do consueto).

A elas Aristóteles acrescenta a democracia, que foi traduzida por alguns autores por república, mas que não se confunde com ela em face da organização em torno do exercício de poder, pois na democracia, o poder soberano é exercido por todos e, na república, ainda o é, mas, em face da institucionalização, a delegação é feita para uma figura externa.

A partir das formas consideradas “puras” pela teoria aristotélica, temos o “desvirtuamento”, nas formas impuras ou impróprias, que são: a) oligarquia: forma política exercida por grupos dominantes, que se favorecem; b) demagogia: condução a partir de falsas perspectivas de governança; c) tirania: forma política de governo com poder ilimitado (em situações excepcionais).

Sistema de governo, por sua vez, é a maneira como se estabelece a relação entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo no exercício das funções governamentais, de acordo com maior ou menor colaboração entre eles. Assim, temos dois sistemas de governo: o sistema presidencialista e o sistema parlamentarista.

No presidencialismo, o chefe de Estado, denominado presidente, também é o chefe de governo, tendo plena responsabilidade política e amplas atribuições. Além disso, é eleito pelo povo, direta ou indiretamente, permanecendo no cargo por tempo determinado, previsto na Constituição. Dentro do presidencialismo, o poder executivo é exercido pelo presidente da República auxiliado pelos ministros de estado que são livremente escolhidos pelo presidente, cuja responsabilidade é relativa à confiança do presidente.

No parlamentarismo, o chefe de Estado, que pode ser o rei ou presidente, não é o chefe de governo. Não tem, nesse sentido, responsabilidade política. Suas funções são restritas. O chefe de governo é o premier ou primeiro ministro, indicado pelo chefe de Estado e escolhido pelos representantes do povo. Fica no cargo enquanto tiver a confiança do Parlamento. O poder Executivo é exercido pelo Gabinete dos Ministros, que são aprovados pelo parlamento. Sua responsabilidade é solidária; se um sair todos saem, em tese.

Bibliografia:

ARISTÓTELES. Política. Trad. Torriero Guimarães. São Paulo, Martins Claret, 2004.
BOCK et alii. Machiavelli and Republicanism. England, Cambridge Press, 1990.
DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria geral do Estado. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989.
ENGELS, F. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo, Centauro, 2000.
HEGEL, G.W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. S. Paulo, Martins Fontes, 2000.
LIMA, Henrique Cláudio Vaz. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo: Loyola, 1988.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe e as dez cartas. 2 ed. Trad. sérgio Bath. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1992.
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