quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sobre cotas, feminismos e maiorias: qual é a nossa, Brasil?

O Supremo Tribunal Federal deve concluir hoje, dia 26 de abril de 2012, um julgamento emblemático na História do Brasil: o sistema de cotas para ingresso e permanência na universidade. Se tudo correr na conformidade do que já se sedimentou nos bastidores acadêmicos, bem como nas conversas de corredores, será aprovada a estruturação - ou uma verdadeira devassa - na forma como concebemos o ensino e o ingresso na universidade. 


Isso porque, não é novidade alguma que o Brasil - um país cujos habitantes sempre fazem questão de "se enxergar" como baluartes de  "democracia", "igualdade" e "cordialidade" - encobre, de maneira não muito aprofundada e até mesmo bem no raso mesmo, uma discriminação atroz em relação à população negra, indígena, assim como a mulheres, homoafetivos e toda sorte de pessoas que são cidadãos e cidadãs. 


Ou seja, o debate é jurídico, claro, mas encerra o desvendar de nossas maiores hipocrisias sociais, na medida em que temos uma auto-imagem de população cordata e benevolente, mas que ainda: a) orbita no sub-emprego (quando empregamos faxineiras, funcionárias do lar a valores de Terceiro Mundo), b) aplaude a reificação da mulher a partir da quantidade de silicone e glúteos, c) espanca, enfim, homoafetivos e que c) legitima o extermínio paulatino de indígenas, a partir da dizimação dos ecossistemas em que habitam. 


Esse é o foco de reflexão...desnudar o halo celestial com o qual insistimos em nos enxergar para, "para além dele", podermos realmente discutir Direito e Política e, com isso, elaborar um mínimo projeto social de consecução de igualdade. 


O argumento, claro, para o repúdio ao sistema de cotas, é o mesmo que se utiliza para silenciar a Maria da Penha: isonomia, levada, claro, em seu sentido mais formal e abstrato, partindo-se da premissa de tratamento equânime em relação e todos e a todas que estão sob a vigência da lei. Não foge disso e, sinceramente, não fugirá, pois ele é o epicentro do que sempre se colocou como divisor de águas até mesmo em nossa Assembleia Nacional Constituinte: um modelo liberal em face de uma proposta social-democrata. O não intervencionismo versus o intervencionismo "temperado" de modelo estatal. Simples assim. 


Na dúvida em relação à "natureza jurídica" de nossa Constituição? 


Não tem problema, pois, claro, como bon(oa)s brasileiros e brasileiras que somos, "inventivo(a)s". "criativo(a)s" e "cheio(a)s de inspiração gersoniana" em termos ideológicos, ficamos com ambos (chamamos isso de comunitarismo, importamos pensamentos de uma Alemanha onde antes mesmo de unificação, já não tinha analfabetismo no séc. XIII e, na maior falta de noção, achamos que a "prática está errada em relação à 'doutrina'")  e, por agora, sofremos o preço existencial de uma miscelânea político-ideológica que nos impele para a discussão em termos societário: qual é a nossa, Brasil?


Em uma sociedade que alcançou um ditame de isonomia material, ou, ao menos, bem próximo a ela chegou, por meio de políticas públicas de encaminhamento isonômico de indivíduos - refiro-me aos países setentrionais, bem como a algumas experiências estadunidenses, a isonomia é tratada de outra maneira, qual seja, considerando-se a regra de horizontalização a coligar os cidadãos e as cidadãs, e não a partir de uma política hierarquizada de vitimização, dentro da qual se fala em protecionismo ou em vulnerabilidade. 


É importante diferenciar, dentro disso, o que são as conquistas sociais resultado de demanda de grupos do que se faz em termos de uma "política de piedade" ou caritas que, acobertadas pela culpa, impelem para a deferência de políticas com base na ideia de fragilização, na medida em que reproduzem a discriminação, mantendo a verticalização.


Explicando melhor...


Não sou favorável ou desfavorável a cotas, Maria da Penha, indígenas...


Tomo como premissa a ideia de que todos e todas, por merecimento de nosso labor e qualificação, tenhamos acesso aos frutos do que é nosso trabalho. 


Acredito que, ante o déficit histórico com o qual o Brasil se elaborou - num molde de hierarquia eclesiástica e discriminação de gênero, raça e etnia - são necessárias políticas públicas para que a equalização seja feita. Apenas desconfio do que se apresenta como construção de cidadania em cima de uma utopia regada a uma síndrome de vitimização em cadeia, que mantém e reproduz os espaços de alijamento dos grupos. 


Explicando mais e melhor...As políticas de "cotas" e de "mulheres" adquirem um sentido de comoção quando são 'deferidas' ou concedidas por quem está no poder: ou seja, HOMENS E BRANCOS. Mais simples que isso, impossível. Basta observar a distinção dos votos dos ministros e ministra.


A ponderação que faço é a seguinte: o que pode ser resultado de uma militância engajada precisa levar em consideração a necessidade de fuga de um pensamento de estar a "cota" e a Maria da Penha fora de uma política clientelista que é resultado de uma "piedade" do paradigma dominante (novamente, homens e brancos), para se tornar demanda consolidada como LUTA. E não "beneplácito" ou benesse, pois isso não é construção de cidadania. Em psicanálise é perversão em cima de sentimento de culpa, imputando a quem está fora da zona de demanda um ônus de olhar vitimizante, para que, a partir daí, acobertados e acobertadas por culpa, políticas públicas sejam concretizadas.


Aplaudo a movimentação dos movimentos sociais em torno do tema. Graças ao feminismo estou aqui, em sala de aula ou no tribunal, portando-me altivamente na defesa do(a)s clientes, em patamar de igualdade. Graças ao movimento negro que tudo foi feito até aqui. Mas, acima de tudo e "para além de tudo", consegui chegar até aqui porque não me portei como vítima. Não me posicionei como vulnerável, não aceitei e não aceito a submissão em ser olhada - por ser mulher - como foco de proteção e tutela. 


Assim sendo, não necessito - ao menos por agora - de política pública alguma em prol de meu sucesso, porque percorri o caminho, até agora, escudando-me em minha postura de olhar o outro com igualdade relacional, e não com parcimônia iconoclasta. Daí, dentro disso, aplaudo o regime de cotas, mas não me identifico com ele porque não estou na zona de demanda. 


Segui o caminho solitário de militar em prol da mulher, pela identidade de gênero, para que minha experiência possa ser compartilhada com quem está momentaneamente alijada de desenvolver, de per se, sua cidadania. Entendo que a Lei Maria da Penha, se levada apenas com o propósito de carcerizar, reproduz a violência contra a mulher porque a revitimiza e, dentro disso, pode até mesmo reproduzir o machismo que tanto odiamos. 


Mas, enquanto se matarem mulheres neste país, enquanto houver uma só piada de mal gosto em termos de destinar a mulher "à cozinha", "à chocadeira de uma maternidade" (como se o papel da mulher se resumisse a isso e não ao que ela é), ao espaço de confinamento, solidarizo-me em torno da Lei, para que, quem sabe, daqui a 50 anos, violência doméstica seja um tema a envolver, de maneira equânime, homens e mulheres. 


Daí, em relação às cotas... 


Sou do paradigma que alijou, sim, pois não posso me destoar da minha experiência, mas não assumo "culpa" porque não tomo como compromisso atual o alcance do passado. Mas nem por isso rechaço a pretensão às cotas. Apenas me furto de integrar a militância porque não me identifico. E aceito, de bom grado, as regras da democracia, segundo as quais a mobilização é base de tudo...Portanto, bem-vindas as cotas!

Um comentário:

Dhenise Galvão disse...

Professora, fantástica a aula substitutiva de ontem.

Parabéns pelos blogs... vou explorar ao máximo.

Ispiradores.