quarta-feira, 25 de agosto de 2010

II Seminário do InEAC - Instituto de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos

Já estão abertas as inscrições para II Seminário do InEAC - Instituto de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos, que acontecerá nos dias 8, 9 e 10 de setembro, no auditório da Faculdade de Educação /UFF – Campus de Gragoatá em Niterói, no Rio de Janeiro. O evento contará com a participação de diversos pesquisadores nacionais e internacionais.

Link: http://www.proppi.uff.br/ineac/ja-estao-abertas-inscricoes-para-o-ii-seminario-do-inctineac-em-setembro

A necessidade de estimular a pesquisa empírica no direito

Ontem conversei com um ex-aluno enquanto aguardava o desenlace de uma audiência. Na medida em que o bate-papo fluía, fui percebendo o quanto realmente é importante o estímulo a pesquisa empírica no direito, porque boa parte da literatura que desenvolvemos nesse ramo técnico de conhecimento nada mais é do que puro impressionismo.

O que vem a ser isso?

Impressionismo?

A teorização de subjetivismo na elaboração "doutrinária". O direito é essencialmente normativo, por certo, porque lida com normas estatais, em vários níveis de hierarquização. Essa predisposição, contudo, de normatizar "tudo que vê pela frente" acena para a tendenciosidade de acharmos - operadores e juristas - que a realidade É e se confunde com a norma, como se o mundo não fosse um grande celeiro de distintas interações humanas que bem podem se dissociar da normatividade.

Eis a razão pela qual tenho achado muito honesta a proposta de realização de pesquisa empírica: desconstruir dentro de mim as categorias que naturalizei e coloquei como dogmas. Comprender, e não catalogar ou pretender normatizar à fórceps.

Já perceberam como uma petição é elaborada? Geralmente por meio do embate entre teses, dentro do qual, sem o menor pudor, "colamos" o pensamento de Fulano, Beltrano ou Sicrano, invocando a "autoridade" do escritor (expert) sem, contudo, desenvolver o argumento.

Quando nos posicionamos diante da realidade à nossa frente - a exemplo de ontem, numa audiência de Maria da Penha, em que se discute igualdade - a tendência é apenas transpor da ordem jurídica enunciados que tentam simplificar a questão: igualdade versus gênero, numa "planificação" da realidade que, a bem da verdade, é bem mais rica e complexa do que os manuais NÃO APONTAM...

Um dia de audiência a mais, um dia de etnografia a menos...

Acho que a pesquisa de campo bem pode se transformar em uma narrativa autobiográfica, pois estou vivenciando verdadeiras pérolas, que me fazem, o tempo inteiro, rever uns valores e consolidar outros.

Ontem fui a campo para observar uma audiência e, dada hora, em que estava conversando calmamente com um aluno, fui cometida por uma sensação muito intensa... o devenir da morte. O mais engraçado que essa mesma sensação foi partilhada com o advogado do autor do fato, bem como com o promotor de justiça, porque, cada qual segundo sua configuração sensível, percebeu o fenômeno de maneira diferente.

Não obstante isso, todos sentimos a proximidade da morte...

Foi em uma audiência de justificação na Maria da Penha, onde o autor do fato amolou uma faca e mostrou para a esposa, a enteada e o marido desta. O senhor estava visivelmente alterado em face do álcool e a senhora, por sua vez, desejava vinte mil reais para ir embora. Não queria sair da casa para morar com a filha.

Desejava ficar ao lado do esposo - mesmo sendo advertida que isso poderia custar sua vida - pois, segundo ela "se saísse de casa, a família do esposa iria tomar de conta da casa". Acho que falhei como etnógrafa, mas, ao final, fiz minha parte como cidadã, pois bastou um olhar do magistrado para que eu me oferecesse para conversar com elas a respeito do evento.

domingo, 22 de agosto de 2010

Mobilização feminista e Lei Maria da Penha

Estamos em plena discussão sobre intervencionismo penal, descriminalização e Lei Maria da Penha.

Ora pretendemos fazer recuar a legislação castrense, ora desejamos ardentemente enviar os homens às galés da repressão, retirando do quarto de despejo a hipocrisia contida em 2.000 anos de ocidentalidade para, em nome do ativismo e dos movimentos sociais, regurgitar em cima dos pratos a bandalheira que o patriarcado impingiu às nobres mulheres.

O debate é fecundo, pois somos desejosas de emancipação, invertendo, contudo, a lógica de sodomia para, do mesmo modo, às avessas, utilizar o mesmo codex para tratar desigualmente os desiguais homens que outrora nos enviavam às fogueiras.

Muito simples...

E quem pode querer diferentemente?

Não há de se julgar quem assim o faça, mesmo a criminologia crítica "feminista" (resta saber qual o feminismo a que estamos nos referindo, pois já bem listei umas 15 matizes aqui de -ismos) compreendendo, na carona pega do abolicionismo de Baratta, insistindo - com muita propriedade - que se trata de um fenêmeno dentro de um outro fenômeno.

Particularmente não entendo que o recorte de gênero e feminismo esteja "contido" na crítica feita pelos criminólogos críticos, tendo em vista não considerarem algo que muito vulto em termos de teorização: a empiria em relação ao que se têm como demandas e expectativas sociais, mesmo que seja em sociedades plurifacetadas como a nossa.

Não é possível levantar, assim, uma bandeira de "melhoria do direito" (quase sempre, coo pretendem os aboliciosnistas) pela "melhoria da sociedade e das pessoas" (é do Baratta isso, mas nem estou a fim de fazer citação de página agora), porque os fatos sociais podem ser arbitrários, apropriando-me da fala do Professor Kant de Lima.

A lei Maria da Penha veio como resultado de um processo de intensa mobilização social, aglutinando demandas de parcela da população, de grupos sociais ideológica e politicamente comprometidos com a necessidade de exposição da violência do patriacado que diuturnamente era colocada embaixo do tapete, por quem?

Pelos próprios componentes humanos da sociedade sectarizada e hierarquizada... em que? Em gênero! Uai, sô! Então fica simples entender isso. Mobilização de demandas em cima de invisibilidade de agressões.

Penso que apenas quando toda essa celeuma for realmente enfrentada - a partir de mea culpa de tudo quanto é lado - que as discussões sobre intervenção mínima e máxima possa ter acolhida, até mesmo em face do exercício de cidadania.

Lutar por punição é exercitar, de certa forma, a cidadania, principalmente onde - no caso, Brasil - juristas ainda falam que os operadores do direito são elite e sabem o que é melhor para o "povo". Apenas não falaram, ainda, que povo é esse. Povo ou polvo? Já nem sei mais, são tantos tentáculos estatais que apresentam tantas dúbias respostas que perdi as contas da ontologia do substrato humano.

sábado, 21 de agosto de 2010

O eDIFÍCIL do sufocante poder da alma

Fonte da imagem: http://tiagohenriquemendes.blogspot.com/2010/05/o-dedo-de-deus.html


Esse poema abaixo foi inspirado num desses dias providenciais em que fui "despachar" na encruzilhada de um juiz federal, sentindo na pele a iconoclastia de um ser que está longe de ser humano... Agradeço-lhe, contudo, porque se trata de um de meus melhores poemas. Ou seja, toda a impáfia extraiu o que tenho de melhor em mim: minha essência!

Homenagem e solidariedade ao Delegado Reinaldo Lobo!










"No caos existencial de uma alma liberta de si
Fui à luta para o mundo de ilusão
Forjei na própria pele a ferida de morte
Lacerei minha nobre alma em troca de sorte
buscando no Outro a imensidão
...
Pintei a sombra do rito de guerra, vesti a couraça e me destaquei de mim
para me violentar no Outro, de forma "sincera"
Brandi a espada justiceira da mentira
tracei rascunhos de cor que nunca antes sentira
Enganei a quem? Já nem bem me lembro
São tantas lutas que hoje ostento
Perdida em castelos ofuscados de dor
Sufocados pelo ar que nem mais consigo respirar...
...
Falta-me o ar, perdido no edifício de desespero
de tantas outras nobres almas em atropelo
Que vão, esperançosas
No caminho da paz se encontrar...
Longe vai a sinceridade
quando os castelos de poder
nem a si mesmos são capazes de amar...
...
A venda que lampeja a navalha
Não sabe mais da luz a revelar
Perdidos seguimos em nossas histórias
Que a verdade, aquela "verdadeira" verdade
Sequer conseguimos hoje enfrentar...
...
E na sala da navalha de fio cego
A penumbra esconde os sustentáculos do poder infame
Que tal qual abelhas em um irascível enxame
Retira para o Mercador uma libra de carne
O que resta para quem pede um pouco?
Um pedaço, quem sabe, de seu próprio fel
Embalado nos grilhões de um bordel
Onde vendeu a alma, nem sei bem quando..."

Transação penal: instrumento repressivo de controle penal recrudescido


Por que sempre achei a transação penal um embuste em relação a ser considerada um instrumento de intervenção mínima???

Simples... ela é a "balinha" recheada de pimenta no controle penal, engendrada sob o signo do recuo da intervenção do Estado, mas, paradoxalmente, revestindo o Estado de um poder "satelitizante" de controle. Vamos lá.

Em um primeiro momento de abordagem, a transação penal pode ser entendida como instrumento inserido em uma dinâmica operacional de recrudescimento jurídico-repressivo, de acordo com a subsunção à lógica anteriormente exposta acerca de uma estrutura sistêmica, da qual derivam subsistemas sociais (dentre os quais o sistema e o direito penal, como discurso operacional lingüístico).

Deriva a transação penal de uma predisposição de estratégicas político-criminais, segundo influências hegemônicas de paradigmas construídos em outras realidades, materializadas e concretizadas a partir de conteúdos programáticos previamente estabelecidos de controle social, como aponta Andrade acerca da funcionalidade de elaboração da técnica jurídico-positiva (1997, p. 26).

É a transação penal, desta feita, o resultado da opção política adotada pelo legislador na estruturação da sistemática dos juizados especiais criminais, restando avaliar, pois, a percepção do instituto como instrumento de maior recrudescimento jurídico-repressivo, ante à predileção de aumento no intervencionismo estatal.

A prevalecente idéia é de que a transação penal é resultado de uma abertura e do paulatino afrouxamento da atuação do Estado no monopólio jurídico-repressivo. Entretanto, ao contrário, representa o momento de maior atuação do Estado na resposta ao crime, por meio da identificação dos mesmos problemas estruturais existentes no discurso jurídico-repressivo.

O caráter de seletividade está presente na transação penal, já a partir da indefinição ôntica do que vem a ser um crime de menor potencial ofensivo, apenas delimitado por um critério político do legislador, ao defini-lo em termos de quantidade de pena. Fomenta a criminalização primária e, de plano, evidencia os destinatários da catalogação como criminosos ou, na acepção terminológica usual, autores do fato.

Os denominados delitos de menor potencial ofensivo são construídos pela produção legislativa, articulando uma estrutura de captação dos desviantes - autores do fato. Esta malha é apontada por Cohen na metáfora da rede de pesca, na qual somente alguns peixes são capturados e redimensionados de volta à sociedade, com suas etiquetas e seus rótulos, incessante e sucessivamente (1985, p. 42).

A própria lei seleciona, uma vez que faz referência à expressão “autor do fato” em diversos momentos de sua redação, antes mesmo de restar delimitada e fixada a lide penal, bem como afastada a presunção de inocência. A rotulação, é repetida no termo circunstanciado, quando protocolizado e distribuído perante o juizado.

Outro ponto de importante relevo para a análise da transação penal relaciona-se à atuação das instâncias oficiais de controle social, a exemplo da atividade policial, foco seletivo do aumento do intervencionismo estatal.

O registro e a captação de crimes insignificantes que antes não eram registrados, por critérios seletivos, cedem espaço à obrigatoriedade de lavratura do termo circunstanciado das notícias levadas à delegacia, aumentando a atuação dos agentes na identificação e no registro dos delitos que hoje estão sujeitos à competência da lei 9.099 de 1995 e na recente 10.259/01 .

Não é outra a conclusão de Azevedo:
"Ao invés de retirar do sistema formal os casos considerados de menor potencial ofensivo, a Lei 9.099/95 incluiu esses casos no sistema formal de justiça, através de mecanismos informalizantes para seu ingresso e processamento. A dispensa da realização do inquérito policial para os delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais retirou da autoridade policial a prerrogativa que tinha de selecionar os casos considerados mais “relevantes”, o que resultava no arquivamento da grande maioria dos pequenos delitos. (1991, p. 321) "

Dias e Andrade afirmam:

"Trata-se daquele espaço de liberdade de que goza a ação concreta da polícia e que ultrapassa largamente as margens dentro das quais a lei permite a intervenção de considerações de oportunidade da polícia. Para exprimir a mesma realidade, falam FEEST e BLANKENBURG em poder de definição da polícia, que descrevem como “a possibilidade socialmente pré-estruturada – legal ou ilegal – de definir uma situação e impô-la vinculadamente a outros”. Isto, a partir da idéia de que a identificação de um delinqüente constitui um processo social de definição cujo resultado final depende do poder relativo dos intervenientes. A importância prática desta discricionariedade já levou alguns autores a assimilar a atuação da polícia à do político. “Polícias e políticos – escreve, a propósito MUIR – empenham-se, em termos idênticos, em submeter coercitivamente os outros aos eventos.” (1996, p. 446-447)

A titularidade do controle social está, em um primeiro plano, ligada à atividade policial e, sendo mais precisa, ao próprio trabalho dos agentes policiais diretamente envolvidos no atendimento aos indivíduos, motivo pelo qual entendem Dias e Andrade ser o “símbolo mais visível do sistema formal de controle, o mais presente no quotidiano dos cidadãos e, por via de regra, o first-line enforcer da lei criminal.” (1997, p. 443).

Em um outro ponto de abordagem, o art. 76 da Lei 9.099/95 aponta para outro pólo construtor e definidor do controle em questão, materializando no Ministério Público o órgão legitimado à proposta da transação penal, em um outro momento do procedimento.

Isto porque, a ele compete a análise fática de inserção do autor do fato às hipóteses previstas em lei, em termos de requisitos objetivos e subjetivos.

O princípio da discricionariedade regrada deflui da titularidade cometida ao Parquet, uma vez que o mesmo é quem primeiramente delineia uma proposta de aplicação imediata de pena.

Assim sendo, longe de representar um acordo motivado e delimitado paritariamente, com a participação decisiva da parte na proposta ventilada, a transação penal finda por concretizar seu verdadeiro sentido, qual seja, “aplicação imediata de punição restritiva de direitos ou multas”, a teor do disposto no art. 76 da lei 9.099/95.

Não pode, por oportuno, ser desconsiderada a participação do magistrado no controle, pois, segundo o art. 76, §3º da Lei 9.099, o juiz aprecia a proposta e homologa o acordo firmado, atuando como órgão ponderador da proposição firmada pelo Ministério Público, ao mesmo tempo em que exerce seu mister de administração de justiça, atividade de controle por excelência.

Esta reflexão ainda encontra amparo na assertiva de que o autor do fato, ao aceitar a proposta e prestando o compromisso de cumprir as condições fixadas, está ingressando na malha de controle social, antes de ser discutido o mérito da causa, por meio do regular processo.

Importante salientar que não foram raras as manifestações pretorianas e doutrinárias para algo mais proeminente em termos de intervencionismo e controle social: o descumprimento da transação penal acarreta a decretação da prisão do autor do fato, violando, assim, suas garantias processuais penais.

Ainda neste pensamento, seria relevante avaliar o efeito que uma proposta de transação representa em termos de controle social subjacente e velado, imperceptível em um primeiro momento, por estar encoberto pelo discurso promissor contido na lógica célere e funcional dos juizados especiais criminais, numa visível transposição da estratégia de punição para a “consciência abstrata” do indivíduo (FOUCAULT, 1991, p. 13-14).

Também neste contexto, quando o autor do fato se predispõe a efetuar o pagamento estipulado na proposta (cestas básicas, por exemplo), ou, ainda, a prestar serviços em determinado estabelecimento, ingressa na rede de poder disciplinar que o aproxima da explicação foucaltiana de domínio do corpo, por meio da atividade contida na proposta, realizada graciosamente, como meio de expiação revestida da idéia de benesse concedida pelo Poder Público ao cidadão “infrator”.

Aliás, neste aspecto, duas observações são pertinentes para evidenciar o intervencionismo velado.

A primeira, relacionada à vedação que o art. 76, §2º, I e II impõe para a concessão do benefício, no caso do autor haver sido anteriormente condenado, em sentença definitiva, por prática de crime.

A segunda, relacionada à concessão do benefício dentro do prazo de cinco anos, que, somada ao caso anterior, comprova a seletividade do sistema do juizado especial.

O paralelismo que o inciso III traz com o art. 59 do Código Penal igualmente leva o leitor à percepção de adequação do instituto da transação penal à mesma lógica operacional do processo penal clássico, com o diferencial relacionado apenas à formatação de que se reveste a lei instituidora dos juizados especiais: uma proposta de uma atuação mínima, mas cujas regras transparecem no modelo já existente de clássica intervenção.

Assim, longe de representar modificação quanto ao intervencionismo, ainda afeta, em nome da celeridade e do funcionalismo, princípios de garantia ao status libertatis do indivíduo.

Por fim, a relevância do presente estudo reside na reflexão sobre o recrudescimento do controle social exercido pela transação penal e legitimado por uma mudança paradigmática no panorama jurídico-penal (da indisponibilidade do processo para o consenso).

Esta mudança é realizada em detrimento dos postulados assecuratórios da liberdade do indivíduo (contraditório, ampla defesa, devido processo legal), fixadores de algumas barreiras ao Estado-sancionador e necessários para que o indivíduo seja constrito de sua liberdade após o minucioso exame da conduta tida como delituosa.

Para Azevedo, o pragmatismo levado às últimas conseqüências pelo sistema da lei dos juizados fomenta a prática autoritária e arbitrária de controle social, reduzindo o “direito punitivo como forma de controle dos comportamentos socialmente indesejáveis” (1996, p. 130), ao mesmo tempo em que evita a sobrecarga do sistema penal.

Não é outro o pensamento de Shecaira:

"Os juizados especiais criminais representam a expansão do sistema repressivo estatal, tanto em relação ao conjunto de condutas definidas legalmente como crimes, como em virtude do aumento da eficácia do aparelho que passa a reprimir condutas até então toleradas". (1991, p. 409)

O controle arrefecido encontra-se estruturalmente contido no discurso jurídico-positivo da transação penal, instrumento político-criminal engendrado de acordo com as exigências de formatação de uma estratégia velada de subsunção do indivíduo a uma política eficiente, utilitária e célere de controle social.

Por esta razão, é infecundo discutir a transação penal no plano de sua constitucionalidade, uma vez que o discurso jurídico-positivo lhe dá suporte, por meio da justificação de confluência da transação ao disposto no art. 98, I, norma constitucional de eficácia limitada, que necessitou de legislação complementar posterior.

Isto posto, é perfeitamente superável esse raciocínio em termos de conflito normativo, já que o despojamento dos princípios de contraditório, ampla defesa e devido processo legal encontram respaldo na lei, como conseqüência da necessidade de imprimir novo impulso dimensionador de rapidez às lides penais envolvendo delitos de menor potencial ofensivo.

Daí a preocupação de transcendência da linguagem técnico-jurídica, para a análise a partir do campo de percepção político criminal, por meio de identificação e da inserção da transação penal em um contexto muito mais amplo e profundo de abrangência, qual seja, uma teorização sistêmica.

Assim sendo, permeável às necessidades de estruturação de estratégias de resposta penal mais eficiente, e, ao mesmo tempo, menos perceptível, o código operacional representado pela produção normativa arrefece o controle social, por meio da edição de uma lei que possibilita a expansão do mesmo, aliada, outrossim, à percepção, no âmbito de opinião pública, bem como da doutrina especializada na dogmática jurídico-positiva, de uma fórmula tida como verdadeira “tábua de salvação” para a falência institucional que vem experimentando o sistema penal.

Além disso, dada a opção sedimentada pelo aumento do controle, a formatação lógico-jurídica é uma questão operativa de concretização da opção política do legislador, em termos estratégicos.

Qualquer argumento desenvolvido no plano da dogmática jurídica fica inerte em termos de reflexão acerca da transação penal, já aceita doutrinariamente como instituto descriminalizante de intervenção mínima estatal, observada sua apreciação normativa.

Mas, contrario sensu, ao ser transposto tal domínio, numa abordagem estrutural, revela-se o aumento do intervencionismo estatal na regulação de condutas, como resultado do recrudescimento no controle social formal.

Por esta razão, infecunda a discussão jurídico-normativa sobre a transação penal, uma vez que seu pilar de sustentação encontra-se alicerçado na lógica jurídica.

Daí a aparente frustração quanto à análise do instituto a partir da dogmática, já que a Constituição Federal dá suporte a legiferância plena ante a formatação da lei instituidora dos juizados especiais criminais.

Eis o motivo pelo qual faz-se necessária a suplantação da referida lógica formal, para que possa ser avaliada uma inserção sistêmica e operacional da transação penal, sob a égide de uma avaliação qualitativa de cunho político-criminal. Marca-se, assim, a superação da dogmática jurídico-penal para a criminologia.

Assim sendo, à guisa de provocação final, a transação penal pode ser entendida como veículo político-criminal de controle social formal, em consonância com a lógica sistêmica do funcionalismo que motiva sua finalidade estratégica de regulação de condutas e impulso de celeridade na administração de justiça penal.

Característica condizente com um não intervencionismo de mercado perpetrado em escala global, recrudescido em sede de atuação estatal no controle da criminalidade.

Isto porque, ao efetivamente ser enfrentado um minimalismo penal, ou, ainda, uma proposta de longo alcance de abolicionismo, está a transação penal fomentando a submissão do indivíduo a um estado de vigilância, reforçado pelas idéias antes descritas, acerca da manutenção do indivíduo na malha de fiscalização que, ainda que precária, em certos casos, finda por trazer para a rede o contingente de indivíduos selecionados pelas agências formais controladoras.

Por outro lado, a assertiva de intervenção mínima, calcada em uma contração do alcance do sistema penal, provoca o debate acerca da descriminalização das condutas sujeitas ao império de atributividade da transação, o que resulta em uma real diminuição no controle social formal, com o recuo da intervenção estatal, bem como com sua adequação à lógica não intervencionista.

Contudo, em Os processos de descriminalização (1995), Cervini elenca óbices erigidos contra a descriminalização de condutas, a exemplo dos fatores favorecedores da criminalização propriamente dita – principalmente em um contexto brasileiro de expansão da lei e da ordem – acrescidos aos fatores que se opõem à redução do campo de ação do sistema penal.

Assim sendo, tanto o medo de que a descriminalização possa fomentar mais condutas descriminalizadas, bem como o temor de descrédito no sistema penal, suscitado pelo impacto da exposição que a mídia faz do crime, formando opiniões favoráveis à expansão do sistema e dos castigos contribuem, por outro lado, para que reste improvável uma proposta de supressão do controle social formal, por meio da descriminalização in totum dos delitos sujeitos à transação penal.

A irradiação de um pensamento funcional acerca do instituto ora apreciado finda, por fim, por suplantar a discussão dos postulados de racionalidade que autorizam, por exemplo, a mitigação dos direitos fundamentais no sistema dos juizados.

Sob a assertiva de pleno funcionamento da estrutura, engendrada com o intuito de impulsionar celeridade, eficiência e rapidez na resposta estatal às condutas classificadas como delitos de menor potencial ofensivo, a lógica operacional em questão relega os direitos individuais para um segundo momento, quando teoricamente o cidadão recusar a proposta que lhe é efetuada pelo Ministério Público.

Subsistiria, então, a intangibilidade dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que, até então – ou seja, até o momento em que o sujeito recusa a proposta – não existiria, ipso facto, processo, uma construção teórica que encontra guarida na visão sistêmica, porém, criticável em sede de tutela do indivíduo.

???? Puro embuste...

Plea bargaining: contribuições estadunidenses para o "ctrl c" brasileiro da transação penal

Toda e qualquer incursão no instituto da plea bargaining somente pode ser feita tomando por base uma digressão histórica sobre a evolução do direito e o sentido da sanção criminal para a sistemática jurídica presente nos Estados Unidos.

Neste sentido, pertinente observar a história do direito penal norte-americano ao longo do período de adaptação dos colonos à nova terra, delineados pela incessante elasticidade e adequação da estrutura iurígena à realidade social pulsátil que lhe dá suporte.

Desta feita, a adaptação dos institutos jurídicos ingleses metropolitanos às particularidades de cada colônia denota a capacidade de flexibilização do vigente direito inglês aos problemas locais, presentes a dada conjuntura.

Friedman aponta uma rudimentar administração das tensões interpessoais, caracterizadoras de um período de “comandos militares” (1972, p. 37), dado o lapso de especialização das funções jurisdicionais propriamente ditas, bem como o latente imperialismo inglês em pretender à manutenção de sua potestade no continente norte-americano, tendente sempre à defesa dos direitos da metrópole, quando em conflito com os interesses coloniais (STEURY, 1996, p. 288).

Com a constante mutação sócio-política advinda precipuamente da autonomia atribuída aos consolidados Estados pós-Independência, o direito consolidou-se em estruturas jurídicas coexistentes com o direito federal, aplicável em caráter de excepcionalidade, fundada sempre no permissivo dispositivo presente no texto constitucional (DAVID, 1998, p. 369).

O direito penal, neste panorama, acompanhou a evolução do sistema jurídico nascente, aparecendo como resposta recrudescida da metrópole às infrações cometidas na colônia, mantendo a hegemonia inglesa no território conquistado, em uma verdadeira política “marcial” de aplicação de penas, não raro beirando a barbárie e aspereza, correlatas ao tradicional sistema do Antigo Regime europeu (FRIEDMAN, 1972, p. 69).

A consolidação do instituto da plea bargaining no contexto da realidade social estadunidense remonta à atualidade, se confrontado com o processo de cristalização dos institutos jurídicos naquele país, uma vez que relacionado, segundo Neubauer, ao período posterior à Guerra Civil, com a efetiva consolidação em meados dos anos 60, já no séc. XX (1996, p. 309).

Neste aspecto, Steury preconiza a recenticidade do instituto, inobstante a verificação de uma secular prática de negociação informal entre o ofensor e a vítima, já em meados da independência, a fim de evitar os altos custos de um processo, sem, contudo, o rigor de que se reveste a atual plea bargaining (1996, p. 288).

De fato, a plea bargaining guarda um ponto de referência com as negociações entre o Estado e o acusado ao longo dos séculos, despida, contudo, da solenidade com que é realizada na atualidade.

O instituto somente foi objeto de estudo e análise em 1970, no processo Brady v. United States tramitado perante Suprema Corte dos Estados Unidos, seguido no ano seguinte pela explícita importância atribuída por aquela Corte Maior, no julgado Santobello v. New York, que se referiu ao instituto como “um componente essencial da administração da justiça” (STEURY, 1994, p. 289).

Administração da justiça. Eis o ponto neural da sopesada importância da plea bargaining, que corresponde atualmente à cifra de 90% de todos os casos em tramitação perante as mais distintas cortes estaduais nos Estados Unidos (GARCIA, 1996, p. 80).

De fato, o sucesso encontrado pelo instituto alienígena pode ser explicado por fatores relacionados, de forma direta ou reflexa, com a otimização do funcionamento da administração da justiça, destacando a racionalização dos custos operacionais do procedimento, por meio dos acordos realizados, evitando gastos com julgamento e aliviando cifras correspondentes ao contingente carcerário.

Garcia diagrama algumas vantagens oferecidas pelo sistema, principalmente no que diz respeito às vantagens experimentadas pela tríade promotor – defensor – juiz.

O prosecutor afasta, de imediato, a possibilidade da absolvição do acusado em um eventual julgamento pelo júri, mantendo, desta feita, as estatísticas de condenação obtidas em prol do promotor.

Como é cediço na dinâmica processual estadunidense, o membro da acusação seria escolhido pela sociedade, representando as condenações fator motivante para se manter o promotor no cargo em questão (GARCIA, 1996, p. 90).

Estas vantagens também são auferidas pelos defensores, com a inerente redução do trabalho realizado - sem prejuízo dos honorários - e a certeza da celebração de um bom acordo, se comparado com a realização do julgamento e a possibilidade de uma condenação mais gravosa ao acusado.

O Estado consegue impor rapidamente a pena ao acusado que assuma a autoria do delito, economizando, assim, os custos operacionais de um julgamento, destinados, ao final, àqueles casos em que há razoável questionamento sobre a culpabilidade do réu (GARCIA, 1996, p. 90).

De forma indireta, salienta-se a satisfação cometida à coletividade, pois, segundo FINE, a eventualidade de uma absolvição cede espaço à certeza do cumprimento da pena aplicada ao réu quando da aceitação da plea bargaining (1987, p. 618).

Tal concepção, contudo, encontra ferrenhos opositores, que acreditam que este sistema procedimental tem exacerbada preocupação com cifras e estatísticas, em detrimento da efetiva aplicação de justiça, de modo a transformar a administração de justiça em um microcosmo capitalista de auspício à produtividade pura e simples (GARCIA, 1996, p. 92).

Collin entende por plea bargaining o procedimento em que o acusado assume a culpa em relação à determinada conduta delituosa que lhe é atribuída, ante a expectativa de obtenção de algum benefício por parte do Estado (1997, p. 179).

Também Neubauer (1996, p. 309) define plea bargaining como uma negociação entre as partes: “Plea bargaining can best be defined as the process through which a defendant pleads guilty to a criminal charge with the expectation of receiving some consideration from the state.

A plea bargaining relaciona-se com a avocatória de culpa pelo próprio acusado, sinônima de assunção de autoria do crime, no sentido de haver o réu empreendido a conduta delituosa, e não a noção de grau de reprovabilidade, que advirá posteriormente, quando da gradação e imputação da pena pelo magistrado.

A confissão do réu, neste sentido, é a mola-mestra do sistema de plea bargaining, já que evita a instauração e o prolongamento do iter processual em face do acusado, ao mesmo tempo que manifesta um consectário natural do ius puniendi do Estado, ante à atribuição de uma sanção penal ao infrator que assume a titularidade do delito.

A autonomia dos Estados-membros na dicção do direito apresenta como conseqüência, a multiplicidade de variações que o instituto do plea bargaining apresenta nos diferentes entes federativos estadunidenses.

São reconhecidos pontos de confluência que permitem classificar aquele instituto nas modalidades voluntary ou ininfluenced bargaining, structurally induced ou implicit bargaining, negociated ou explicit bargaining (GARCIA, 1996, p. 79-92).

A denominada influenced bargaining decorre da confissão incondicionada do acusado, ante à manifesta culpabilidade do mesmo, não sendo, assim, necessário efetuar qualquer tipo de negociação entre o indivíduo e o promotor. A essência desta modalidade, menos usual, está centralizada no vasto rol de evidências que levam à autoria do delito, não havendo qualquer vantagem para o réu a negação da conduta delituosa.

A structurally induced - também conhecida como implicit bargaining – deriva da certeza de atribuição severa da pena quando da realização do julgamento. Por outro lado, a afirmação da culpabilidade leva à certeza de benignidade na atribuição da sanção penal àquele que assuma a titularidade do delito.

O acusado, nesta visão, tem uma expectativa de obter um resultado mais favorável, sendo informado, outrossim, de suas opções de escolha: assumir a culpa e receber a penalidade, ou ir a julgamento, arriscando uma penalização maior do que a aplicada se estivesse assumindo a culpa (MCDONALD, 1979, p. 385).

Na explicit bargaining ou negociated, onde imperativo é a negociação entre as partes, subdividida em charge bargaining (também conhecido por charge reduction ou dismissal), e sentence bargaining (denominada sentence reduction ou “on the nose guilty plea”).

Conforme esposado anteriormente, tanto no caso previsto em sede de voluntary, como em structurally induced pleas, não existe uma negociação propriamente dita.

Tais modalidades de assunção de culpa não derivam de acordo direto ou reflexo entre o ofensor e o órgão acusatório, e sim, de uma motivação unilateral do acusado em evitar o deslinde de um julgamento inoportuno.

Mutatis mutandis, a negociação efetiva entre o promotor e o réu é mais perceptível nas figuras da charge bargaining e sentence bargaining, cada qual com sua peculiar característica, porém com o denominador comum baseado na idéia de existência de um acordo efetivo.

Ocorre charge bargaining quando a assunção de culpa é trocada pelo comprometimento do promotor de justiça em “reduzir, abandonar ou abster-se de trazer imputações adicionais” (GARCIA, 1996, p. 84) em face do acusado, sendo permitido a este, outrossim, o exercício do juízo de retratação, não estando, por esta razão, obrigado aos limites da barganha.

O fator motivante da retratação centraliza-se na possibilidade de uma prática muito comum entre os promotores, denominada overcharging: a inclusão aleatória de mais tipos penais, sem que o acusado tenha necessariamente incursionado pelos mesmos, para que, na hora da barganha, algumas figuras sejam excluídas, mantendo, outrossim, intactas aquelas pelas quais o réu efetivamente responderia, de forma a aumentar o quantum em potencial da sanção.

Reduz Neubauer o campo da charge bargaining, admitindo a substituição da imputação inicial por outra menos gravosa, como, por exemplo, no caso verificado entre furto e roubo, sendo então considerada charge bargaining a assunção de culpa em face de um delito menos gravoso do que o originalmente imputado, de forma a reduzir a o grau da condenação in tese (1996, p. 311).

Para o autor, inclusive, o abandono de imputações constitui modalidade distinta – denominada count bargaining – onde o acusado assume a imputação de uma ou algumas, mas não de todas as figuras delituosas que lhe são atribuídas pela acusação, reduzindo, outrossim, o quantum da pena.

Acrescenta, porém, a escassez de utilização desta espécie de plea bargaining, em prol da substituição pela imputação menos gravosa prevista na charge bargaining.

Pode ser observada na sentence bargaining uma negociação entre a acusação e o réu, não mais centrada na imputação em si do delito, e sim, calcada na promessa, por parte do promotor, de recomendação de benefícios em face do acusado, relacionada ao abrandamento do quantum da pena a ser aplicada, bem como medidas de reabilitação, no caso, por exemplo, de se tratar de dependentes de droga.

No outro pólo da “barganha” está o acusado, que igualmente pode oferecer vantagens à acusação e reduzir sua pena em potencial, tais como a devolução de eventual res furtiva, o comprometimento de indenização aos familiares ou à própria vítima, ou ainda, bastante praticado nas cortes estadunidenses, a colaboração com a polícia, bem como a participação em julgamentos como testemunha.

Importante salientar, neste contexto, que o empenho do promotor não denota a obrigatoriedade do êxito em recomendar o benefício, sendo apenas uma obrigação de meio, adstrita, posteriormente, à chancela do magistrado em aceitar ou não as recomendações que lhe foram feitas.

O acordo previsto no sentence bargaining, ao contrário da modalidade anterior, não admite juízo de retratação por parte do acusado, sendo, por isso, considerado uma barganha de alto risco, uma vez que o réu aceita o provável acordo, sem saber, de fato, se tal será efetivamente acatado pelo juiz, como aponta Bassiouni : “the court shall advice the defendant that if the court does not accept the recomendation or request the defendant nevertheless has no right to withdraw the plea ” (1969, p. 462).

Elencadas as vigas mestras do plea bargaining, em sua essência geral, muitas críticas são feitas ao instituto elencado, sendo expressiva a gama de opositores que delineiam ferrenhos argumentos contrários ao dispositivo.

Oportuno destacar algumas divergências, sem, contudo, esgotá-las, uma vez que fogem ao objetivo do presente trabalho (GARCIA, 1996, p. 90-91):
a) grande poder discricionário cometido à figura do promotor, que decide, ao final, qual a incursão penal à qual o acusado irá se submeter;
b) inexistência de desenvolvimento do iter processual, sendo as imputações atribuídas pelo promotor calcadas em meras conjecturas, sem se apreciar a verdade dos fatos, da qual se distancia, inclusive, o próprio juiz da causa;
c) imparcialidade do órgão julgador em caso de um eventual julgamento;
d) possibilidade de indução do acusado a aceitar a imposição de plea, sob a temerária advertência de agravamento da pena, no caso de se proceder ao efetivo julgamento;
e) renúncia de direitos constitucionais, tais como: a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, que são afastados em nome da maior atividade producente de agilização de justiça;
f) primazia à celeridade e rapidez na resposta penal, em detrimento do justo processo legal, com vistas à contenção de custos processuais.

Roxin, Jakobs e a panacéia jurídica da ignorâNCIA sobre teoria dos sistemas...

A perspectiva da construção de uma teoria jurídico-penal hábil a responder aos crimes encontrou no trabalho de Hans Welzel sua consagração, a partir da consolidação da denominada teoria finalista, que toma como base de estruturação o querer direcionado consecução de objetivos colimados.

Como observado em linhas anteriores, essa percepção não deixaria espaço para punição de conduta sem que se possa distinguir o conteúdo da voluntas do agente, encerrando, desta feita, um forte componente psicológico na percepção do delito, ao se direcionar a produção de resultado ao comportamento tendente a alcançar o fim constituído no plano da vontade do sujeito ativo do delito (PRADO, 2000, p. 196).

Em uma proposta de mudança paradigmática, acrescentam-se ao presente esboço analítico os modelos funcionalistas propostos por Claus Roxin (modelo funcionalista aberto) e Günter Jakobs (modelo funcionalista fechado), esteados na percepção sistêmica do Direito Penal.

Claus Roxin, precursor da teoria personalista da ação, relaciona a ação ao estado anímico do agente, concebendo a mesma como uma categoria prévia, imediatamente à percepção jurídica, inserindo o elemento político-criminal na articulação da identificação do delito, uma vez que considera o direito penal como um subsistema teleologicamente direcionado à prevenção.

O autor trabalha, assim, com a unificação sistemática entre a política criminal e o direito penal, onde aquela se identifica com os fins da pena, fundamentando-se na culpabilidade a razão de ser punitiva em face do autor do delito, ante o reconhecimento, in concreto, do binômio culpabilidade/inevitabilidade da resposta penal.

É o que aponta, ao comentar: "Em última instância, a utilização do conceito de bem jurídico na definição dos fins da pena dada pelo PA quer expressar, ainda, um ulterior princípio pragmático político-criminal, a saber: a tese de que não se trata de censura moral a uma conduta, mas apenas a da sua qualidade de factor perturbador da ordem pacífica externa – cujos elementos de garantia se denominam bens jurídicos – que pode acarretar a imposição de penas estatais." (ROXIN, 1998, p. 60)

De outro lado, Jakobs embasa sua teoria sistêmica em uma matriz funcionalista-sociológica, embasada nos trabalhos de Luhmann, sustentando que o jurista não tem como dominar o problema das conseqüências de sua decisão – dada a natureza da imprevisibilidade e mutabilidade do mundo e da realidade – sendo necessário um elemento integrador e estabilizador da norma.

Assim, Jakobs concebe o direito penal como instrumento de proteção das normas penais, cumprindo a pena a missão de confirmar a vigência da expectativa da norma defraudada pelo autor (BICUDO, 1998, p. 105). A violação da norma é vislumbrada como um fato disfuncional, na medida em que protege a confiança institucional no sistema e a segurança dos cidadãos, como instrumento de política criminal vigente em determinada sociedade.

Mais críticas são feitas a tais teorias, na medida em que, de um lado, a clássica teoria finalista, de cunho volitivo, não seria capaz de suportar as vicissitudes de uma realidade tão articulada em termos de sujeição ativa, a exemplo do que se aqui em relação à corrupção praticada por entes personalizados.

As teorias funcionalistas representariam, dentro do desespero da impunidade, uma nova interpretação acerca dos fins a que se destina o direito penal, atribuindo à atividade do intérprete um forte conteúdo político-criminal, apanágio da colaboração que a criminologia empresta à dogmática jurídico-penal.

Resta, contudo, observar os limites de abrangência que tais teorias apontam, na medida em que estejam colacionados direitos fundamentais esquadrinhados ao longo das histórias de luta do homem enquanto sujeito producente de cultura jurídica.

A proposta funcionalista encontra coerência na articulação feita entre postulados teóricos (de natureza jurídico-positiva, abstrata e transcendente, fomentando a corrupção em cascata no Brasil) e diretrizes de ação (de cunho predominantemente pragmático), na medida em que encara o direito penal como um subsistema componente de uma estrutura ainda mais abrangente em termos sociais.

Não residiria, pois, problema algum nesta percepção, já que seria condizente com a modificação paradigmática que a globalização impôs ao mundo pós-moderno, onde os subsistemas comunicam-se entre si.

Assim, o modelo funcional-estruturalista proposto em linhas anteriores, no qual o sistema internacional pode ser apreciado em termos de adequação, já traria em seu bojo a probabilidade de superveniência de fatores possíveis e prováveis – a exemplo do enfrentamento da corrupção praticada por pessoas jurídicas – tidos como normais ante o comportamento interno do sistema variar.

Eis, pois, a chave para o entendimento acerca da avaliação de estratégias e mecanismo para o controle do terrorismo, na medida em que este passa a ser fato esperado em termos de funcionamento sistêmico.

Poderia trazer, contudo, a preocupação relacionada à contra-resposta à corrupção, principalmente ao ser apreciar, em termos qualitativos, a atuação de países como os Estados Unidos, onde esse funcionalismo, em sede de pragmatismo, pode sobrepor à necessidade de alcance de um propalado equilíbrio – entropia zero – aviltando, por outro lado, direitos relacionados à dignidade do indivíduo.

Demais disso, um modelo integrado, englobando o direito penal e a política criminal poderia ser nominado “aberto” em termos de reais finalidades, na medida em que o ramo jurídico-positivo não mais se destine ao seu caráter garantista, fragmentário e subsidiário, para abranger uma teleologia estranha à proposta de tutela de bens jurídicos.

Mais além, a demarcação de um novo campo operacional do direito penal, para açambarcar fins outros poderia, de igual maneira, resultar na perda de identidade deste ramo do conhecimento, em detrimento de sua autonomia direcionada à proteção do status libertatis individual. São críticas que orbitam – como não poderia deixar de ser – no antigo paradigma, sendo facilmente rebatidas quando se transpõe a ótica finalista para a compreensão do funcionalismo penal.

A adoção de primados funcional-estruturalistas, envolvendo uma visão integradora da política criminal com o direito penal não se coloca na contramão dos direitos individuais, mas, antes, entende que é necessária uma ponderação sobre predileção de direitos, procurando a harmonização entre os direitos que refletem direitos individuais às necessidades de salvaguarda de direitos sociais, entendendo, assim, que a segurança passa a ocupar lugar numa sociedade de riscos.

Aliás, com muita propriedade é necessário fazer um resgate à dignidade do funcionalismo penal, pois, apesar de ser criticado pelos adeptos do finalismo, a doutrina que mais vocifera a defesa do finalismo não deixa de prestigiar algumas pérolas do funcionalismo, apropriando-se de parte de sua doutrina (numa apropriação leviana, dentro da qual o que é proveitoso para o direito finalista é usado; o que é desprestigiado é relegado a segundo plano).

Assim, não seria prepotente lembrar que os princípios da intervenção mínima, adequação social, insignificância e lesividade, longe de serem uma criação mágica do finalismo, são resultados de intensa pesquisa e construção da doutrina alemã datada da década de 80 (principalmente por parte dos mencionados teóricos), vindo, assim, a colorir ainda mais a certeza de estarmos em pleno movimento de ímpar transição paradigmática.

Sem deixar de mencionar a orientação cada vez mais crescente – porém ainda tímida em relação à responsabilização penal da pessoa jurídica – do Superior Tribunal de Justiça, que não poupa esforços em, pouco a pouco, usar o paradigma funcionalista para a resolução de celeumas que esbarram naquela Corte.

Seria, portanto, o reconhecimento da mutação vindoura, mas que irritantemente desagrada quem ainda sustenta o caduco finalismo, que não mais detém a menor condição de sustentar regras de imputação baseadas no incremento de risco que as pessoas jurídicas oferecem à Administração Pública.

Um julgado de 2007 pode ilustrar muito bem essa percepção sobre a mudança vetorial. O julgamento se deu em 06 de junho de 2007, no âmbito de um Recurso Especial (REsp 822571/DF) em que o recorrente apontava negativa de vigência (exatamente) ao caput do art. 13 do Código Penal Brasileiro, argumentando no sentido da impossibilidade de se imputar ao recorrente a responsabilidade pela morte da vítima, sob o argumento de ter agido dentro do que a doutrina moderna denomina de "risco permitido". O Relator foi o Ministro Gilson Dipp e o recurso foi parcialmente provido .

A pesquisa não se direciona para a discussão do conteúdo do julgado, mas, em harmonia com os objetivos firmados, é possível especular (ainda que provisoriamente, pois a discussão gira em torno de um paradigma exsurgente, o funcionalismo) o enfrentamento do tema pelos tribunais superiores, o que já satisfaz a pretensão do trabalho.

Diante de todo o percurso até aqui realizado, algumas reflexões ficam para eternização. Primeiro, o presente ensaio reflexivo não esgotou o tema, pois não era esse o objetivo.

Ao contrário, voltou-se para a proposição de um novo olhar sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, ao revelar que nosso ordenamento jurídico já contempla uma mutação paradigmática, a partir do art. 225, §3° da Constituição Federal do Brasil, que poderá servir para o redimensionamento do art. 13 do Código Penal Brasileiro.

Posteriormente, situou tal abertura constitucional num processo globalizante, que demanda uma superação do enfrentamento no mesmo paradigma, apresentando um enfoque interdisciplinar, envolvendo o direito penal, a criminologia e a política criminal, em harmonia com a necessidade de superação do paradigma finalista criado na década de 40.

Apontou-se, com isso, a consolidação de novas áreas e novos saberes, exigindo, assim, o alargamento da ciência penal, para o advento de uma eficaz resposta para a busca de novos mecanismos maximizantes do controle social formal punitivo.

Mais adiante foi apresentado o modelo funcionalista, representado pelo pensamento do sociólogo alemão Niklas Luhmann que desenvolveu a compreensão do direito como subsistema autônomo, que reconhece os demais e os normaliza, exercendo, assim, uma função de controle social punitivo, marcada pela neutralização de quem não se alinha ao papel de componente de uma sociedade complexa de respeito e fidelização à normatividade.

O funcionalismo foi apresentado como contraponto ao paradigma finalista, em consonância com a movimentação mundial fortemente marcada por sociedades pós-modernas, pós-industriais, cuja aferição de lesividade passa a ser delineada em função de processos cognitivos, e não mais pura e simplesmente em termos de mera vontade.

Para tanto, foi exposta a superação de um modelo que segregava mente e corpo (portanto, cognição e vontade), para se conceber tal como processo interligado, e não apenas como domínios ou coisas distintas.

Permitiu-se, assim, a abertura para a releitura de causalidade na imputação, prestigiando-se a desconsideração do indivíduo como parâmetro para uma percepção sistêmica, para ser redimensionado como unidade orgânica definida em termos de estrutura componente de um sistema, sendo o mesmo o foco cognitivo de onde parte a percepção de sua realidade construída, na medida em que se prostra como observador e construtor operacional da realidade circundante.

Nesse pensamento, a compreensão de vida, vontade e cognição, puderam ser igualmente redirecionadas para o conceito de atividade cognitiva, de modo a concentrar na comunicação e nos códigos lingüísticos a essência da montagem e da articulação de uma estrutura de rede que permitiria, portanto, a imputação de responsabilidade a um ente.

Apontou-se, dentro de tal compreensão, a total adequação da Constituição de 1988 ao funcionalismo, pela incorporação do art. 225, §3°, punindo penalmente as pessoas jurídicas que ocasionem lesão ao meio ambiente.

Tal dispositivo foi interpretado como sendo o divisor de águas, consolidando, assim, a mudança paradigmática que agregou ao texto uma nova possibilidade de leitura das regras de imputação penal, a partir da percepção de risco. Seguindo essa orientação, apontou-se a possibilidade de harmonização do art. 13 do Código Penal Brasileiro às novas exigências delimitadas pela Constituição, texto que recepcionou o antigo e obsoleto Código Penal de 1940.

Foram contrapostos os modelos finalista e funcionalista, apresentando-se os pensamentos e as diferenças entre as doutrinas de Jakobs e Roxin para, a partir da aí, ser feito um cotejo com a antiga percepção do direito penal clássico intervencionista, que se apropriou, contudo, em seu discurso, de alguns postulados funcionalistas.

Foi apresentada, a título de ilustração, a movimentação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça em torno da aceitação, com reservas, da teoria funcionalista, o que corroborou, mais uma vez, para se concluir pela inadequação do paradigma funcionalista para o enfrentamento de uma criminalidade que se volta para a prática de corrupção, prevalecendo-se de uma estrutura organizada.

Não objetivei aqui exaurimento do problema, porque ainda existe a necessidade de maior debruçamento sobre o tema.

O que basta, por agora, como uma proposta – que foi cumprida em decorrência da finalidade do trabalho – é a certeza de se assumir uma postura de assunção da mudança, para se possibilitar, pouco a pouco, a criação de uma doutrina penal que possa compor a exigência de efetivação de um corpo teórico que sustente, mais adiante, a responsabilização irrestrita da pessoa jurídica. Quem sabe, assim, a Lei de Gérson faça parte apenas de um passado distante em nossa trajetória de vantagens e corrupção.

O que usei como referência? Afinal, nnum mundo jurídico onde SÓ se copia de um bando de papagaio de pirata, importante dizer de onde surgiu a verve crítica, e não o crtl c. Aí vão:

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Funcionalismo penal e teoria dos subsistemas sociais de Luhman: menos ctrl c e mais leitura, advogado(a)s!!!

O que torna um pensamento, uma doutrina, uma teoria ou hipótese um paradigma? Importante responder a tal indagação, já que a proposta de mudança aqui é revelada e anunciada como sendo paradigmática.

Do finalismo para o funcionalismo: como seria esse “salto quântico” de imputações? Como o comportamento humano – e, portanto, sua densa gama de complexidades ligadas à consciência – poderia ser transposta para um ente?

A fim de responder essa pergunta, necessitamos do conceito de paradigma, palavra advinda do grego “paradeigma”, que significa padrão ou modelo, acepção posteriormente desenvolvida pelo físico Thomas Kuhn a partir do livro A estrutura das revoluções científicas.

O autor apresenta ali um diferencial entre paradigma e um modelo, pois, ao contrário deste último, o paradigma surge como uma idéia aceita pela comunidade científica e acadêmica, uma resposta possível para explicação de um fenômeno, não constituindo um modelo fechado de induvidosa certeza.

O termo ‘paradigma’ aparece nas primeiras páginas do livro e sua forma de aparecimento é intrinsecamente circular. Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma. (1970, p. 43)

Uma revolução científica viria a existir, para Thomas Kuhn, a partir do momento em que um novo paradigma ocupasse integralmente um topos explicativo no lugar de um outro, que é, então, superado. Até a superação do modelo antigo, os paradigmas coexistiriam cada qual, em sua proposta descritiva e causal do fenômeno científico, num movimento de repulsa recíproca – já que são antagônicos.

Não constitui tarefa difícil, dentro disso, observar como o finalismo consolidou-se como paradigma dominante para atribuição de critérios de imputação pelo comportamento delitivo, ao mesmo tempo em que, dadas as mudanças, não mais consegue resolver todos os problemas originados numa sociedade de massas, anônima, que se lança rumo ao descumprimento de expectativas.

É exatamente nessa lacuna explicativa que a substituição paradigmática passa a ser possível, não sem antes existir uma verdadeira “batalha campal” entre as teorias, pois um paradigma sempre procura subjugar o outro na explicação e no enfrentamento do problema focado.

No início da proposta falou-se na superação de um problema sob a perspectiva de teorização em outro nível, citando, para tanto, o pensamento de Albert Einstein a respeito do assunto.

Pois bem, fazendo um cotejo com a situação aqui revelada, poderia ser afirmado que o finalismo não cumpriu as exigências do projeto de pós-modernidade que, enfrentando uma criminalidade de massa, eclodiu num descompasso com a necessidade de controle penal.

Daí a identificação pontual do problema, que não pode ser enfrentado na mesma planificação em que foi gerado: palco fecundo para o funcionalismo.

Em contraponto ao paradigma finalista, despontou, pouco a pouco, o funcionalismo, como modelo proemitente a responder aos anseios de sociedades pós-modernas, pós-industriais, marcadas pelo descompromisso com cumprimento de papéis, em vários níveis, pelos elementos que as compõem.

Os que perfilham o finalismo (não são poucos os doutrinadores e intérpretes do direito) advogam o argumento de sua característica essencialmente garantista e, portanto, assegurador da efetiva punição pela concretização do que volitivamente o agente almejou cumprir e cumpriu, numa proposta que se baseia – diga-se de passagem – nos antigos postulados iluministas, que partem da premissa de liberdade da vontade.

O que, por ora, discute-se em nível de funcionalismo (e que é importante para nossas futuras conclusões) é a imputação em função de cognição, de consciência, e não mais apenas a demarcação de vontade.

Reside na relação mente e corpo, vontade e cognição a mudança de paradigma, pois, ao se transpor a vontade de ação para a cognição como orientadora da vontade, rompe-se a segregação, considerando-se, assim, mente, matéria e consciência como processos interligados, e não apenas como domínios ou coisas distintas, cuja compreensão poderia ser engendrada em termos de descrição meramente objetiva .

Concentrando o foco, portanto, na consciência, Capra aponta um processo cognitivo emergente de uma atividade neural complexa, derivada de dois tipos diferenciados de experiências cognitivas: uma “consciência primária”, que surge quando os processos cognitivos passam a ser acompanhados por uma experiência básica de percepção, sensação e emoção, acrescida de um segundo tipo de consciência, uma noção de si mesmo, formulada por um sujeito que pensa e reflete (2002, p. 55).

Nesse contexto, conceitos outrora tidos como irretocáveis, tais como o de lei e de causalidade, cedem espaço para um “caráter probabilístico, aproximativo e provisório” (2001, p. 31), na qual a simplicidade de redução do fenômeno é um reducionismo simplificado da realidade.

Segundo Santos, as noções de lei têm cedido espaço, principalmente na biologia, às noções de sistema, estrutura, modelo e, por fim, de processo, culminando, assim, no questionamento acerca das respostas dadas pela causalidade, em sua difícil percepção de ontologia e alcance – o que é considerado como nexo causal.

No que diz respeito à desconsideração do indivíduo como parâmetro para uma percepção sistêmica, o ser humano pode ser redimensionado unidade orgânica definida em termos de estrutura componente de um sistema, sendo o mesmo o foco cognitivo de onde parte a percepção de sua realidade construída, na medida em que se prostra como observador e construtor operacional da realidade circundante.

Nesse pensamento, a compreensão de vida, vontade e cognição, poderiam ser igualmente redirecionadas para o conceito de atividade cognitiva, de modo a concentrar na comunicação e nos códigos lingüísticos a essência da montagem e da articulação de uma estrutura de rede que permitiria, portanto, a imputação de responsabilidade a um ente.

E como isso poderia ser possível no ordenamento jurídico brasileiro? Como atribuir sentido de cognição a uma pessoa jurídica?

O tema não traz muita novidade, pois a Constituição Cidadã, na inovação de um pensamento voltado para a proteção de valores comunitários, incorporou em seu texto o art. 225, §3°, punindo penalmente as pessoas jurídicas que ocasionem lesão ao meio ambiente.

O legislador constitucional, ao contemplar na redação da Carta a previsão de punição pela responsabilização penal da pessoa jurídica, deu o primeiro passo para a mudança paradigmática que se revela nessa pesquisa, pois agregou ao texto uma nova possibilidade de leitura das regras de imputação penal, a partir da percepção de risco.

Reconheceu o legislador o declínio da clássica relação de causalidade objetiva, por observar os riscos existentes na vida social, gerando, dessa maneira, um mecanismo auto-regulatório caracterizado pela atribuição de pena ao criador de uma conduta criadora de um risco relevante e juridicamente proibido.

Se uma conduta criou um perigo relevante e juridicamente proibido ao bem jurídico e se o resultado produzido correspondente à concretização do perigo juridicamente desaprovado, a intervenção do direito penal será necessária, municiando-se o intérprete, a partir da proposta constitucional, de produzir, em termos infraconstitucionais, uma modificação na maneira como realiza a aplicação das regras de imputação.

Torna-se, portanto, tarefa menos árdua a mutação interpretativa para abranger outras possibilidades, bastando intérprete harmonizar o texto constante do art. 13 do Código Penal Brasileiro às novas exigências delimitadas pela Constituição, texto que recepcionou o antigo e obsoleto Código Penal de 1940.

Deveria a sociedade aguardar a mudança legislativa para promover a modificação nas regras de imputação? Pode-se avaliar que não, uma vez que o texto legal contém, no art. 13, uma regra de causalidade que pode ser interpretada à luz do funcionalismo.

Quando se afirma que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa” o texto não faz referência alguma a alguma teoria em especial, deixando abertas as portas para de entender na imputação ali descrita o incremento do risco produzido pelo agente.

Assim, não poderia o finalismo, por intermédio da teoria da conduta (comportamento humano voluntário, consciente e consistente num fazer ou não fazer, doloso ou culposo) ajustar-se ao comando constitucional, no caso de grandes empresas, que encobrem interesses escusos, utilizarem o expediente do funcionário para a realização de um ato criminoso atentatório à Administração.

Por essa teoria, o conglomerado – que se esconde por trás do agente-laranja – não cometeria crime, já que ausente o atributo de vontade organicamente direcionada ao fim. Em casos assim, pela teoria finalista do crime, a imputação deve ser feita a partir da individualização da conduta, por intermédio da busca de responsabilização pessoal.

Quando não se descobrisse, por outro lado, a identidade do agente envolvido, pelo benefício da dúvida, o indivíduo por ventura processado seria declarado inocente e a sociedade, insatisfeita na impunidade.

É exatamente nesse posicionamento que a grande criminalidade de astúcia locupleta-se à custa da Administração Pública e do bem comum, pois se infiltra no Poder Público, por meio da atividade de uma advocacia antiética e criminosa, que integra uma verdadeira organização-cascata, ou seja, disposta em vários níveis de estruturação.

No meio de tamanha burocratização da criminalidade – geralmente amparada por uma pessoa jurídica “de fachada” – a responsabilização não é possível, já que o paradigma de imputação ainda prestigia um direito penal liberal, que não se adequa à sociedade de contatos anônimos.

Os indivíduos que compões o vasto rol das sociedades, associações, fundações e demais entes personalizados, passam incólumes pela teia de controle e captação penal por conta da insistência do modelo em seguir as regras de demonstração de atos volitivos, o que não mais se ajusta à necessidade de conformidade de conduta à evitabilidade de risco, por este figurar no processo cognitivo (que tanto pode ser cometido pela pessoa natural quanto pela jurídica, pois as regras e as normas já são, de antemão, conhecidas e reveladas).

Mas, ao se transpor o paradigma finalista de volição individual, bem como de autonomia fechada do direito penal para um modelo de riscos e de processos cognitivos que contemplam pessoas e entes, a imputação é possível. Possível e viável, possibilitando, assim, o alargamento do controle social punitivo formal, contribuindo, assim, para uma proposta vanguardista de adoção do funcionalismo para desvendar o véu da impunidade em crimes correlatos à corrupção praticados por pessoas jurídicas.

Não se trata de simplesmente aplicar a teoria funcionalista, pois na frívola tentativa de transposição da volição para cognição que reside a maior crítica feita pelos finalismos aos funcionalistas, acusando-os de robóticos e violadores das garantias fundamentais individuais (Zaffaroni, 1998, p. 157), pois a mudança de paradigma pressupõe a mudança de entendimento e compreensão sobre a finalidade do direito penal.

Assim, diante da falaciosa “proteção de bens jurídicos” (Toledo, 1999, p. 13-14) propalada ao longo de 50 anos de doutrina penal, uma transformação vetorial torna-se necessária, para se assumir uma nova função a ser desempenhada por um direito penal pós-moderno: o controle social punitivo e a estabilização de um sistema normativo, com a ponderação no recuo e na intervenção do direito penal, de acordo com regras de imputação pelo incremento de risco proibido, ou seja, que se encontra além do que é permitido pela convivência.

É na compreensão de constituir o direito penal um subsistema integrado à política criminal, como código que atribui uma linguagem que elege o controle social punitivo como foco principal de orientação, não mais sendo concebido como mecanismo atuante quando outros métodos falhavam, mas sim como processo ativo de seletividade do que será punido, garantido pela lei e por outros sistemas de controle aglutinados na tarefa de manutenção da ordem social, em uma relação de implicação na qual o controle conduz ao desvio, não o contrário.

Funcionalismo penal a partir da teoria luhmaniana

A idéia de funcionalismo não é recente, pois já nos idos dos anos 80, o sociólogo alemão Niklas Luhmann desenvolveu a compreensão na qual o direito passa a constituir um subsistema autônomo, decodificador da linguagem dos demais – sociais, políticos, econômicos, culturais, gerando, a partir da conjugação de todos eles, um próprio código ordenatório, concomitante aos demais subsistemas componentes da sociedade .

Diferentemente da compreensão de fechamento epistemológico com que a dogmática penal estabeleceu suas regras de imputação nos idos de 40, o que aqui se observa é a ampliação de um campo, para que o direito penal reconheça outros subsistemas e, dentro disso, possa normalizar o sistema do qual todos fazem parte.

Pode, assim, ser delineada a interpretação que a funcionalidade da dogmática jurídico-penal e do direito penal são códigos que ocupam um lugar bem definido no interior do sistema jurídico: conexão efetiva entre “dever-ser” à sua operacionalização, o “ser”. (1980, p. 20-21), em contraposição a uma promessa não cumprida pela direito penal clássico, já que esse não tem minimizado a incidência de comportamentos criminosos.

O direito penal, assim, findaria por se identificar com as projeções que lhes são esquadrinhadas pela com a política criminal, inserido aquele primeiro como subsistema social, motivando, assim, uma mudança paradigmática, que vai função de tutela de bens jurídicos para uma finalidade de controle social punitivo, marcada pela neutralização de quem não se alinha ao papel de componente de uma sociedade complexa de respeito e fidelização à normatividade.

Qual a razão de tamanha mudança? Bem simples: as sociedades pós-modernas não mais se ajustam aos modelos antigos, em virtude do afrouxamento de laços que caracteriza uma sociedade massificada.

Em uma sociedade de massas, não haveria espaço para a percepção integrada de individualidade, mas, antes, para a visualização dos papéis desempenhados pelos indivíduos quanto ao dever de compromisso com uma ordem caracterizada aprioristicamente pela fidelidade ao código operacional representado pelo direito penal.

Segundo Jakobs : "O grau de fidelidade ao direito não é determinado segundo o estado psíquico do sujeito, mas é estabelecido como parâmetro objetivo por meio de uma pretensão dirigida a cada cidadão. Mas, exatamente, em razão desta pretensão se trata de um cidadão, uma pessoa, e não de um indivíduo sem amarras. Quem é culpável não satisfaz a medida aplicável aos cidadãos, é dizer, tem um déficit de fidelidade ao direito" (2003, p. 38).

Ante essa identificação funcional de missões cometidas aos membros do grupo, a finalidade do direito penal necessariamente estaria voltada para a garantia de manutenção do código comunicacional, por meio da observância da norma contida no preceito legal.

Daí necessariamente advir, segundo Jakobs, a destinação reativa do direito em face de um reconhecido adversário, qual seja, aquele que não observa a destinação de seu papel em coletividade, e, insistindo, ameaça à coesão interna.

Neste sentido, o primeiro ajuste interpretativo sobre a proposta funcionalista de Jakobs é a especificidade quanto aos crimes identificados como preponderantes em um panorama de globalização, a exemplo do que acontece no crime organizado, tráfico de drogas, crimes contra o meio ambiente e, no caso específico do presente trabalho, dos crimes correlatos à corrupção, praticados por pessoas jurídicas.

O rol acima descrito bem ilustra a realidade de anonímia nos contatos pessoais, em que se sobreleva a necessidade de substituir a individualização da conduta – eixo central da teoria finalista – para a punição pelo advento do chamado risco proibido, marcado pela exacerbação da conduta tida como ponderável em termos de cumprimento do papel individual.

O não-alinhado é um indivíduo (ou ente) que abandonou o direito , de maneira não meramente incidental, atacando imediatamente o mínimo de segurança cognitiva do comportamento e manifestando sua infidelidade ao direito por meio da conduta, atingindo ou colocando em risco, mediatamente, a segurança dos bens jurídicos.

Por que esse modelo constitui um novo paradigma? E como esse paradigma pode encontrar aceitabilidade no sistema jurídico penal, que se pauta em regras específicas de legalidade? Eis os desafios.

Direito penal, finalismo e globalização: ventos de mudança

E a teoria finalista da ação, em meio a tanta mudança?

Afinal, por ela, impossível a responsabilização de pessoa jurídica, porque se delineia a partir do conceito de conduta humana, consistente num fazer ou não fazer voluntário e, que, dentro disso, não abrangeria os entes que, a exemplo da pessoa jurídica, não “possuiriam” capacidade de manifestação e execução de vontade.

Tal pensamento – e, portanto, sua conversão em uma teoria penal para responsabilização de condutas – adveio no cenário da fecunda década de 40, consolidada em um momento muito diferente do que percebe no séc. XXI, uma vez que, àquela época, ainda surgia incipiente o nascente “boom” no desenvolvimento humano, tecnológico, político, social e cultural.

Em termos de sistemas jurídicos – e, mais especificamente, em termos de direito penal – o século passado ainda colocava obstáculos para o intérprete e aplicador da lei penal em relação a observar a dogmática jurídica como sendo o único pilar de sustentação das regras de imputação, tendo em vista nossa tradição romanista de apego à codificação e autonomia do positivismo.

Assim sendo, a ciência penal poderia ser entendida como sinônimo de dogmática penal, nos idos da década de 40, diferentemente do que adveio, no decorrer do tempo, com o desenvolvimento de novos ramos a compor as ciências penais.

A consolidação de novas áreas e novos saberes passou a revelar a necessidade de alargamento das fronteiras da ciência penal, por intermédio da paulatina delimitação da autonomia das expoentes ramificações experimentadas pelo desenvolvimento da criminologia e da política criminal, trazendo a necessidade de mudança epistemológica e metodológica.

Isto porque, o discurso dogmático não seria mais hábil a, sozinho, proceder a uma eficaz resposta para as constantes modificações que realidade cambiante impele às sociedades ocidentais pós-modernas, direcionando-as à busca de novos mecanismos maximizantes do controle social formal punitivo, principalmente em face da prática, cada vez mais percebida, de novos comportamentos, brotando da inventividade humana que, pouco a pouco, na Lei de Gérson, encontra abertura para se realizar.

Dentro de uma realidade instantânea e em latente ebulição, o direito penal, processual penal, bem como a criminologia e a política criminal não poderiam deixar de acompanhar as constantes modificações experimentadas pelo movimento que o mundo passou a experienciar a partir do processo de globalização.

O conceito de globalização – bem como seus efeitos e reflexos – está, assim, intrinsecamente relacionado com as necessárias mudanças no direito penal para o enfrentamento de crimes na pós-modernidade.

“Fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” – eis a observação de Santos (2002, p. 26) sobre a uma tendência mundial de relativização da soberania, caracterizada pela existência e manutenção de um Estado recuado, voltado para estimular a sociedade civil, articulada numa democracia liberal e no primado do direito e do sistema judicial, sendo esses dois um elo vinculante da globalização política à econômica.

As sociedades ocidentais pós-modernas, dentro disso, direcionariam seus planos diretores para o compromisso com a imanação de ordem, previsibilidade e confiança, assegurando a normatividade e o cumprimento de expectativas sociais, dentre as quais, o controle de riscos no âmbito penal.

A globalização – em suas várias dimensões – trouxe um pulsar novo para o direito penal, sendo precursora do que se entende como uma vaga funcionalista de intervenção penal, que se volta para o alcance de estabilização de normas e concretização de metas definidas por um modelo programático de multiplicidade de regras (Bicudo, 1998, p. 98).

O direito penal, nesse contexto, perderia sua autonomia epistemológica (e, dentro disso, seu criticado fechamento numa “torre de marfim”), para se identificar com as projeções que lhes são definidas pela política criminal e pela criminologia, pois, alargando-se o campo das ciências sociais para que esses três ramos trabalhem conjugadamente, a otimização do controle punitivo poderia ser possibilitada, ao se enxergar o direito penal como parte de uma estrutura que lhe é imediatamente mais ampla: sua percepção como subsistema social.

responsabilidade penal subjetiva para a teoria funcionalista: o dimensionamento globalizante de novos contornos mundiais e a doutrina penal

Para que um comportamento seja punido pelo Estado, necessária a adoção, por parte do órgão responsável (magistrado) de critérios objetivos descritos na lei penal (no caso, tanto no Código Penal, como, também, no Código de Processo Penal) e na doutrina, para que a decisão não seja arbitrária e resulte em injustiça desmotivada.

Eis a razão pela qual uma orientação político-criminal colocou o Brasil na predileção pelo modelo de imputação (ou responsabilização) subjetiva, na qual o sujeito (indivíduo) é punido pelo que psiquicamente imantou, projetou e realizou, ao contrário do que se observa, por exemplo, na responsabilidade objetiva, que se atém apenas na deflagração de um resultado, colocado a olho nu a frente do observador.

Para o finalismo de Hans Welzel (década de 40) – teoria que explica a natureza da conduta – torna-se impossível atribuição de sanção penal a quem, no mínimo, não houver agido com dolo ou culpa, afastando-se, dessa feita, a responsabilização pela mera causação material do fato, sem indagação quanto ao liame de produção.

Assim, restando evidenciada a inexistência de dolo e culpa em determinado caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, poderia ser afastada a conexão entre o comportamento e o tipo penal (denominada tipicidade), afastando, também, como via direta, a culpabilidade como sinônima de responsabilização penal subjetiva.

O raciocínio não é difícil, pois, conforme anteriormente desenvolvido, o princípio da legalidade é o fundamento da construção jurídico-penal, por intermédio dos conceitos de tipo e tipicidade. Assim, não seria equivocado afirmar que o tipo penal é uma irradiação do princípio da legalidade para o direito penal.

Isso quer dizer que somente os tipos penais podem criar hipóteses de encaixe (também chamada subsunção) entre um comportamento e o modelo que descreve o crime, atribuindo, assim, um critério seguro e objetivo de aplicação de pena, dentro dos limites a que se agrega o direito penal num Estado Democrático de Direito.

O tipo penal constitui, assim, um molde, uma fórmula legal, um modelo descritivo de uma conduta penalmente relevante, formatado a partir da elaboração técnico-jurídica que o legislador faz, mediante a seleção dos valores e interesses merecedores da categorização como bem jurídico.

Mediante um juízo de tipicidade (ou seja, de encaixe), o magistrado avalia o amoldamento da conduta ao molde descrito em lei: uma verdadeira amálgama entre comportamento e descrição prévia, legal, manifestada no tipo.

Para cumprir essa atividade, empreende o juiz a um minucioso exame do que a doutrina penal entende por elementos constitutivos do tipo, a saber: a) elementos objetivos, relacionados à descrição do dispositivo legal; b) elementos subjetivos, relacionados ao estado anímico do sujeito ativo, aferindo a voluntariedade direta ou indireta de ataque, ou a assunção do risco em face da conduta praticada (figuras dolosas); como também pela aferição de existência de lesão pela ausência de dever de cautela ante a previsibilidade objetiva do resultado (figura culposa) .

É na análise do conteúdo de vontade do comportamento no momento de uma ação (ou omissão) direcionada à Administração Pública que reside a chave para a compreensão de toda a sustentação da responsabilidade pessoa e individual pela prática de condutas definidas como crime e, portanto, para qualquer proposta de mudança paradigmática a respeito da inclusão da pessoa jurídica no rol de imputabilidade.

Isso porque, o art. 13 do Código Penal Brasileiro constitui importante referência para que a análise seja feita, uma vez apontar para o que o legislador considerou importante como definição da chamada relação de causalidade:

O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A relação de causalidade é, por definição legal, um elo ou uma conexão entre a causa (comportamento) e a conseqüência (o resultado decorrente do praticado), sendo imprescindível observar, no texto da lei, que a imputação é efetuada “a quem lhe deu causa”.

Eis a pertinência da pergunta, objeto da presente proposta: a referência a “quem” diz respeito apenas a um ser humano? Poderia tal expressão relacionar-se com a imputação às pessoas jurídicas?Como poderia ser alargada tal definição, para que possa ser admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica que corrompe o efetivo da Administração Pública?

O artesanato da advocacia e o ofício do advogado no Terceiro Milênio

Fonte da imagem: http://www.overmundo.com.br/guia/artesanato-em-guaraquecaba
Com o inverno vem a hibernação, preparando-nos para o despertar de uma primavera que sempre traz a idéia de renovação de ciclos e oxigenação da alma. Assim como a Natureza - e, na verdade, seguindo o curso da Natureza por me perceber parte inerente dela - oxigenei-me e cá estou com novidades.

Passei bastante tempo sem dar notícias e até ensaiei "abandonar" a profissão, sob a reincidente alegação de não me adequar à advocacia. Comecei um curso de psicanálise, que está dando aporte bem interessante em relação à vida e ao mundo, de forma que a repaginada no direito veio como resultado do momento de introspecção.

No período de parada - que, na verdade, foi a pausa necessária para imprimir maior capacidade reflexiva - profissionalizei-me: iniciei o doutorado em Direito pela Universidade de Brasília, comecei um trabalho atendendo mulheres em situação de violência, bem como, por agora, comecei uma proposta diferenciada de advocacia, em meio às mudanças pelas quais o mundo está passando em idos de globalização.

Estamos em pleno processo globalizante, que traz, de um lado a outro, muitas perspectivas de análise. Roberto Aguiar percebe na globalização “um fenômeno de aproximação entre grupos humanos que engendram relações produtivas, econômicas, financeiras e políticas, a partir de interesses complementares de dominação ou cooperação” (2000, p. 93), lembrando-nos que o processo ora pode representar um movimento de verdadeira solidariedade humana, ora pode possibilitar a consolidação de estruturas e sistemas opressivos.

O geógrafo Milton Santos, por sua vez, na obra Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (2001), compreende no processo o ápice da internacionalização do mundo capitalista, fato este que pode situar a globalização a partir de três pontos: o fenômeno como fábula, perversidade e modelo de como poderia ser.

Para o autor, o fenômeno passa necessariamente pela relativização da soberania, de acordo com o crivo do posicionamento do Estado em relação à globalização, ao entender que a participação do mesmo, ao contrário do que poderia ser imaginado, não diminuiu, mas, antes, continua forte e regulador do mercado, ao construir infra-estruturas e alterar suas regras “num jogo combinado de influências externas e realidades internas.” (2001, p. 78)[2]

Aponta Santos a existência de três consensos políticos básicos: o Estado fraco, para estimular a sociedade civil, a democracia liberal e o primado do direito e do sistema judicial, este último aspecto de relevante interesse:

"Num modelo assente nas privatizações, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança não pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígio em função de quadros legais presumivelmente conhecido de todos." (2002, p. 41-43).


O direito e o sistema judicial são, na visão de Santos, um elo vinculante da globalização política à econômica, entendendo que a imanação de ordem, previsibilidade e confiança resultam do “conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em função de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos” (2002, p. 43).

A percepção do fenômeno globalização pode ser apreciada sob dois enfoques: considerada como um movimento e homogeneização ou, por outro lado, de uma fragmentação cultural e étnica. Esta reflexão é relevante, uma vez que a assertiva de homogeneização leva à denominada ocidentalização, com predominância à “americanização”, contraposta à idéia da coexistência de dissensos, representada pela multiplicidade cultural.

Por que falar em globalização e advocacia artesanal? Porque dentro do processo globalizante vemos diuturnamente crescer uma espécie de advocacia industrial, marcada sensivelmente pelos mega-escritórios, especializados e sectarizados em funções e estruturas que possibilitam um serviço supostamente "de qualidade" e "pessoal".
Trata-se de uma falácia, bem como uma contradição, pois a robotização e a consolidação de estruturas sectarizadas trazem, de fato, a impessoalidade, transformando a dor do cliente em uma cifra. Como sabem, já advoguei em "larga escala" e, sinceramente, perdi muito em termos de sensibilidade jurídica.

Depois da experiência com violência doméstica aprendi a me deixar cativar pelo problema do cliente, dando o suporte emocional e profissional para sua situação. Profissionalizei-me em processos terapêuticos (floral de Bach e psicanálise, ainda em curso), justamente para ampliar possibilidades de oferecer aos clientes e às clientes uma advocacia artesanal, que possa suprir as necessidades de todos.

O que seria a "advocacia artesanal"?

Uma resposta simples à impessoalidade da mega-advocacia. Trata-se de um trabalho de ourivesaria. Muitos e muitas de vocês sabem que sou avessa ao esquema ctrl c + ctrl v de simplesmente colar peças, como se a vida do cliente fosse um quebra-cabeças frio e calculista.

Minhas petições, minhas atuações em audiência, ou, ainda, as sustentações e os acompanhamentos em tribunais (ordinários ou superiores), tudo é realizado segundo um procedimento bem burilado de reflexão, onde as teses são criadas, pensadas, refletidas, amadurecidas, pari passu às estratégias de atuação.

Nesse aspecto, não precisaria dizer muito a respeito da agregação de técnicas de linguagem subliminar, análise do discurso, teoria dos jogos. Essa estratégia de abordagem escapa, incólume, a um modelo de advocacia tecnocratizada, dentro da qual a potestade dos escritórios ocupa o espaço do brilhantismo da mente humana.

O cliente acaba pagando, dentro disso, o preço do ar condicionado de R$6.000,00, ou, ainda, o valor estratosférico - embutido na conta dele - da garagem do prédio. Ostentação que cativa? Sim, claro, mas às custas da simplicidade que é apenas sentar-se à frente de um computador e deixar a mente criativa fazer o resto.

Quando o advogado(a) senta-se diante de um computador já preocupado em ganhar a causa para receber o dinheiro para pagar as contas, acabou-se a ADVOCACIA, porque, enfim, acaba-se o sacerdócio... Ele é mais um agente dentro de uma grande MATRIX...

1º Concurso Hugo Grotius de Monografias

Fonte: http://www.weekendletter.com/weekend-letter/etsi-deus-non-daretur/
Estão prorrogadas até 15 de outubro as inscrições do 1º Concurso Hugo Grotius de Monografias, iniciativa do Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC) e da Embaixada do Reino dos Países Baixos no Brasil. O prêmio reconhecerá as melhores monografias na área de direitos humanos produzidas por estudantes de graduação e por pesquisadores.

Apoiam o concurso a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), a Procuradoria Regional da República da 3ª Região e a Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.

A categoria estudante tem como tema central “Direitos humanos no século XXI: avanços e perspectivas”. Para pesquisadores, o tema é "Justiça de transição: a composição entre os ideais de justiça e paz”.

O vencedor de cada categoria será contemplado com uma passagem de ida e volta São Paulo-Holanda. Além de certificado de premiação, os três primeiros classificados de ambas as categorias receberão livros com títulos pertinentes ao tema do concurso.

Para inscrever-se, os interessados deverão enviar a monografia à ESMPU, seguindo as regras estabelecidas no regulamento do concurso. O novo prazo para o envio da monografia é válido também para aqueles que já postaram seus trabalhos e desejarem reenviá-los em versão revista. O resultado será divulgado no dia 17 de novembro de 2010, com data da solenidade da premiação programada para o final de novembro.

O endereço para remessa é Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) – SGAS Avenida L2 Sul, Quadra 604, Lote 23 – CEP 70200-640 – Brasília (DF) – A/C Divisão de Avaliação. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 7661-7091 ou pelo e-mail falecom@iedc.org.br.

O regulamento completo está disponível no endereço www.esmpu.gov.br.

Fonte:
Assessoria de Comunicação
Escola Superior do Ministério Público da União
(61) 3313-5132 / 5126

Percurso histórico da etimologia da corrupção: Grécia à colônia

Seria muito simplista abordar a corrupção na Administração Pública, apontando para os atos ilícitos do Poder Público nas pessoas de seus servidores, agentes públicos e políticos. Os noticiários estão repletos de notícias assim, envolvendo escândalos de propinas e favorecimentos, podendo fomentar, com isso, o esquecimento quanto à participação cidadã nos assuntos de Estado.

Com o resgate da participação do indivíduo nesse processo – inclusive em termos de responsabilização – almeja-se o incremento da solidariedade entre os membros do corpo social, por intermédio da identificação do cidadão com a estrutura que integra. Longe de ser utópica tal percepção, ela deriva do mais simplista de todos os argumentos: o Estado, bem como sua articulação interna – Administração Pública – existe para a satisfação de exigências sociais e coletivas, partindo, pois, da noção de indivíduo sem a qual se torna impossível o enfoque global do problema.

Em sentido amplo (ou lato), até mesmo a etimologia da palavra corrupção é favorável à compreensão de uma ruptura com ordem estabelecida, uma vez que corruptus advém da aglutinação entre uma partícula de adesão “co” (ao mesmo tempo) e “ruptus” (romper, quebrar), indicando um antagonismo entre uma ordem estabelecida e uma conduta que a viole, a quebre, a desnature .

Uma primeira conclusão advém daí: onde existe coletividade, pluralidade e divergência, provável e possivelmente existirá corrupção, pois essa nada mais é do que elemento integrante de um sistema social que comporta a diversidade. Daí a substituição da expressão “combate à corrupção” pelo “controle da corrupção”, mais sincera com a percepção de existência eterna de condutas corruptas na história ocidental .

Sérgio Habib chega à mesma conclusão, ao afirmar não ser a corrupção uma característica peculiar a um tipo de governo, Estado ou administração, mas um resultado direto do que se percebe como afrouxamento de padrões morais e alargamento de tolerabilidade em relação à impunidade (1994, p. 26), que estão ou podem estar presentes em todas as sociedades.

Tendo em vista a tradição republicana que origina a compreensão jurídica e política brasileira remontar às clássicas concepções estadistas gregas - que influenciaram Roma na estruturação de sua República e seu Império -, importante considerar a ancestralidade do conceito de corrupção, já presente em Aristóteles por ocasião de sua obra “Da geração e da corrupção”, texto que analisa a manifestação do movimento a partir do diálogo com os pré-socráticos Parmênides e Heráclito.

Nunca é demais lembrar que o particularismo aristotélico é o paradigma (ou modelo) de compreensão do Estado a partir da pluralidade e diversidade de pessoas que se encontra submetida a uma ordem natural e imutável, disposta numa hierarquia fixa submetida a uma noção de cosmo fragmentado numa região celeste ou supralunar - na qual os fenômenos são determinados - e uma região sublunar, marcada pela contingência que dá origem à discussão sobre geração e corrupção (FARO, 2004, P. 26).

A corrupção, ali, corresponde ao maior ou menor grau de gênese e destruição presente na região sublunar, palco de mutabilidade e vicissitude, bem como sinônimo de rompimento com a ordem.
Momentos depois, já em Roma, a Lei das XII Tábuas deixava à mostra a preocupação do Estado com as condutas praticadas pelo magistrado, pois constava na tábua nona a previsão de morte para o juiz corrupto: “Se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado recebeu dinheiro para julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto” .

Mesmo que o dispositivo se relacione à corrupção nas estruturas do Estado (enquanto o presente foco diz respeito, especificamente, à corrupção que parte da conduta de particulares), importante firmar a compreensão de existência de uma preocupação remota com o tema.